Atenção: esse texto possui spoilers.
O desenvolvedor de games Thomas Anderson (Keanu Reeves) não vive uma grande fase. Enquanto busca criar algo novo, ele tem momentos de confusão mental nos quais acredita ser o Neo, protagonista de sua consagrada trilogia de jogos Matrix. À medida que a ficção parece cada vez mais real, o homem precisa decidir entre acreditar no que está diante de seus olhos ou fazer o tratamento recomendado por seu psicólogo.
Dezoito anos após o lançamento de seu terceiro filme, a franquia “Matrix” está de volta com um novo longa-metragem. Entretanto, dessa vez apenas a diretora Lana Wachowski está envolvida no projeto, uma vez que sua irmã Lilly decidiu afastar-se por um tempo da indústria cinematográfica.
Ao retomar uma história que já tinha um desfecho e ressuscitar o protagonista, o roteiro escrito por Lana junto com David Mitchell e Aleksandar Hemon até parte de um ponto interessante, pois foi boa a ideia de apresentar os acontecimentos dos três primeiros filmes como se fossem de uma trilogia de jogos. Melhor ainda foi a sacada de colocar o protagonista com dúvidas sobre a realidade onde vive, afinal, “Matrix” (1999) plantou na mente de seus espectadores a dúvida sobre estarmos ou não vivendo em uma simulação.
O problema é como essa boa premissa acaba sendo desenvolvida. Antes de tudo, o filme precisava em algum momento explicar o porquê de Neo e Trinity (Carrie-Anne Moss) estarem vivos novamente. Ao tentar esclarecer isso, o roteiro falha miseravelmente. Simplesmente não faz sentido as máquinas terem desejado ressuscitá-lo por ser uma “anomalia”, afinal, sua existência era uma ameaça a Matrix.
Além disso, o fato dele gerar energia não justifica o grande esforço para reconstruí-lo. Ele ter sido ressuscitado pelas máquinas torna contraditória até mesmo a boa premissa do filme. Afinal, se ele precisava esquecer quem havia sido, no intuito de não voltar a ser uma ameaça, por que então a Matrix transforma o Thomas Anderson justamente no criador do Neo? Assim como a Trinity, ele deveria exercer qualquer outra atividade que não remetesse ao seu passado.
Já em relação a ela, o arco da personagem até começa bem. A nova vida familiar e o nome completamente dissonante de sua personalidade são aspectos coerentes com a necessidade de ela não lembrar do passado. O que estraga é o final. A Trinity foi treinada pelo Morpheus por muito tempo e não voou nem mesmo no auge de sua preparação. Fazer isso agora não faz sentido nenhum. Se havia o desejo de colocá-la para salvar o Neo, então os roteiristas deveriam ter desenvolvido uma jornada coerente com esse desfecho.
A ausência dos atores Laurence Fishburne e Hugo Weaving, respectivamente Morpheus e Agente Smith nos filmes anteriores, também era algo que precisava ser justificado. Em relação ao primeiro, a ideia de tornar o personagem uma criação virtual para o jogo Matrix é boa. Isso explica a diferença na aparência. Já quanto ao Smith, inicialmente faz sentido ele ser o chefe do Neo, como uma espécie de vigia dele. Entretanto, a partir do momento que o personagem se revela, o rosto diferente como um modo de disfarçar-se deixa de ser coerente.
O roteiro ainda possui muitos outros problemas. Um deles é exagerar na quantidade de vezes que o Neo faz aquele escudo para evitar ser baleado. A cena em que personagens saltam de prédios para servirem como bombas não faz sentido algum, pois as máquinas estariam sacrificando aqueles que lhe servem como fonte de energia. Além disso, o conflito entre o Smith e o psicólogo é totalmente injustificado.
Quanto as interpretações, o Keanu Reeves vai bem ao mostrar um Thomas Anderson confuso. Só que ao mesmo tempo, o fato de o protagonista aparecer idêntico ao John Wick enquanto está na Matrix descaracteriza demais o personagem. Suas melhores cenas não ocorrem em meio a correria, mas nas conversas do Neo com o psicólogo, além de instantes fora da Matrix, como quando ele diz sentir que todo seu esforço anterior foi em vão.
Intérprete da Bugs, Jessica Henwick (Game of Thrones) faz dela uma jovem motivada, esperta e corajosa, o que resgata um pouco do espírito da equipe da antiga nave Nabucodonosor. É uma pena que sua personagem não tenha tido uma relevância maior no final. Destaca-se ainda a Carrie-Anne Moss, pois ainda que a Trinity tenha passado a maior parte do filme sem ter a consciência de quem realmente era, os diálogos da atriz com o Keanu Reeves mantém o vínculo visto nos filmes anteriores.
Apesar da preservação de alguns diálogos ter prejudicado um pouco do ritmo do filme, a montagem é um dos pontos fortes dessa obra, por saber resgatar cenas das produções anteriores e inseri-las nos momentos certos. Isso não somente gera nostalgia no espectador, mas também contribui na compreensão de quem é quem, além de mostrar que certas características não mudam, mesmo com o passar do tempo.
Uma vez que está claro o quão problemático é esse longa-metragem, a questão que fica é: por que ele foi apresentado assim? Em uma cena ainda no começo, na qual o Smith diz que a Warner iria fazer uma quarta versão do “jogo” mesmo que seus criadores não queiram, fica evidente que as irmãs Wachowski estavam passando um recado. É como se a Lana dissesse ‘fiz o filme porque me senti obrigada’.
É compreensível que qualquer artista busque manter o máximo de controle sobre aquilo que criou. Só que também é triste quando alguém contribui para que sua própria obra se torne menos prestigiada. Se algum dia houver um quinto longa-metragem, creio que está na hora de passar o bastão para outra pessoa. É fato que o lendário primeiro filme segue como um dos mais revolucionários do cinema, mas “Matrix Resurrections” é uma oportunidade perdida de conquistar uma nova geração de fãs dessa história.