Órfã de pai desde muito cedo, educada somente em casa e vivendo longe dos irmãos, Enola Homes (Millie Bobby Brown) sempre enxergou a mãe Eudoria (Helena Bonham Carter) como sua referência. Entretanto, aquela mulher também escondia segredos e participava de reuniões secretas. Um dia, ela simplesmente desapareceu. Solitária e sob o risco de parar em um colégio interno, a filha decide fugir para investigar o paradeiro da mãe, mesmo sendo irmã de ninguém menos que Sherlock Holmes (Henry Cavill).
Quando Arthur Conan Doyle escreveu as histórias do renomado detetive, Enola Homes não existia. Ela é uma criação de Nancy Springer, uma escritora dos Estados Unidos que criou seis livros sobre a personagem. Lançada em 2006, a primeira publicação chamada “Enola Holmes: O Caso do Marquês Desaparecido” foi a base para o roteiro de Jack Thorne.
A adaptação para o cinema decidiu preservar a comunicação direta da protagonista com o público, quebrando a quarta parede de forma recorrente, muitas vezes no meio dos diálogos de Enola com outros personagens. A missão de dirigir essa narrativa foi dada a alguém que já está acostumado com essa prática: Harry Bradbeer, conhecido do grande público pela direção de quase todos os episódios da série de TV “Fleabag”, onde a atriz principal também olha para os espectadores e fala com eles de forma franca.
Ao adotar essa interação da personagem para conosco, o longa-metragem apresenta virtudes e defeitos. Esse recurso funciona bem quando utilizado nos filmes para nos inserir mais na história, ao exibir pensamentos, angústias e planos de alguém. Mas o que ocorre em muitos momentos é justamente o oposto: uma quebra da narrativa para apontar algo que nós já percebemos ou poderíamos enxergar de outra forma. Quando os acontecimentos daquele mundo são interrompidos para algo nos ser dito, o ritmo é quebrado e o envolvimento também é paralisado.
E se o filme funciona apesar disso, a maior responsável se chama Millie Bobby Brown. Quando a história é pausada para Enola falar conosco, o carisma que a atriz empresta a personagem nos puxa de volta para a trama. Uma vez que sua atuação transfere autenticidade a protagonista, logo nos importamos com a adolescente, torcemos para ela tomar as decisões corretas e tememos o que lhe possa acontecer diante dos perigos enfrentados. E assim, ficamos interessados em saber o que Enola tem para dizer, mesmo quando isso faz a história parar momentaneamente.
Quem também possui uma interpretação adequada é Henry Cavill, ao interpretar um Sherlock comedido. Sem exageros, ele faz o clássico detetive não tomar a atenção da história para si. Sua serenidade contribui como uma referência comparativa a Mycroft Holmes, vivido por Sam Claflin. O ator encarna bem o papel do irmão mais velho que se torna vilão ao buscar assumir as funções familiares do pai falecido.
O caminho da protagonista se cruza com o do jovem Visconde Twekesbury (Louis Partridge), um rapaz mimado e pouco agradecido, que está sendo perseguido sem saber quem deseja lhe ver morto, muito menos a razão para isso. O encontro dos dois chega a aparentar ser uma breve subtrama, mas cresce ao longo da história, o que tira de Enola bastante do seu foco inicial. O filme acerta em fazer a personagem expressar sua motivação para isso.
Algumas conveniências ocorrem ao longo da história. Certas decisões tomadas pelos personagens lhe levam a questionar se aquelas pessoas realmente fariam tal escolha. A motivação do momento em que certo fato acontece fica em aberto, uma vez que não é dito porque aquilo ocorria somente naquele instante. As vezes ações têm consequências, fortalecendo bastante a trama, enquanto em outras partes não testemunhamos o que realmente se passaria em tal circunstância.
Embora a história apresente essas incongruências, alguns elementos te motivam a seguir acompanhando o filme. A começar pelos mistérios abertos no início da narrativa, cuja resolução é aguardada. Somam-se a isso uma personagem empática, a trilha sonora envolvente e uma ótima ambientação histórica, através de cenários e do ótimo trabalho nos figurinos.
Por fim, o maior acerto: ao desconstruir a ideia de que todas as mulheres no passado aceitavam passivamente a realidade que lhes impunham, o longa-metragem valoriza pessoas que são desconhecidas pela sociedade atual, mas foram decisivas em mudanças sociais importantes, ainda que os méritos ficassem com terceiros nos registros históricos. Mandando do passado uma indireta para o presente, a obra apresenta uma mensagem forte expressada de forma leve, diante de um detetive clássico que dessa vez teve pistas de que o mundo precisa mudar.