Esse texto contém spoilers.
Nove meses já se passaram desde a batalha contra o Devorador de Mentes em um shopping. Acreditando que seu pai adotivo Jim Hopper esteja morto, Jane (Onze / Eleven) tenta recomeçar sua vida com Joyce, Will e Jonathan na Califórnia. Sem seus poderes, lidando com o luto, longe do namorado que ficou em Hawkins e sendo vítima de bullying, ela nunca esteve tão frágil. Enquanto isso, na sua antiga cidade, uma nova criatura maligna começa a fazer vítimas.
Enquanto na história menos de um ano se passou, na vida real foram 1058 dias entre o lançamento da última temporada e o retorno de “Stranger Things”. As filmagens que começaram em fevereiro de 2020 foram fortemente afetadas pela pandemia de COVID-19, tendo sido interrompidas entre março e outubro daquele ano. Encerradas quase um ano após serem retomadas, as gravações ainda precisaram passar por todo o processo de pós-produção.
Essa demora se reflete em algo bem notório: a garotada cresceu bastante entre essas duas temporadas. Ainda que isso cause um estranhamento inicial, a trama desenvolvida pelos irmãos Duffer não demora a nos conectar a essa história ainda mais sombria. Porém, antes disso, a série começa mostrando como anda a rotina de cada um dos seus muitos personagens. Para boa parte deles, a vida parece ter alcançado uma nova normalidade.
Porém, isso é só aparência. Na realidade, personagens como a Jane e a Max ainda tentam se manter de pé depois de tudo que viveram. Além dos traumas, vale lembrar que a maioria deles está na adolescência, época na qual buscamos construir nossa identidade e apresentá-la aos demais. No caso das duas, há um desejo de transparecer força, uma vontade de mostrar que tudo está bem, mesmo sem estar.
O Lucas também busca aparentar ser alguém que essencialmente não é, ao se integrar ao grupo do basquete visando ter popularidade. Entender o crescimento deles e começar mostrando como eles lidam com essa fase é um acerto. Depois de estabelecer como os personagens estão, a temporada vai esquentando pouco a pouco. Apelidado de Vecna, numa referência ao monstro do RPG, o novo vilão do mundo invertido visa justamente adolescentes traumatizados.
A maneira como ele ataca, ainda no primeiro episódio, já mostra o quanto a criatura não está para brincadeira. A partir dali, sempre que um novo personagem passa a ter a visão daquele relógio, se cria uma sentença de morte. Quando isso já está bem demonstrado, a Max se torna alvo do Vecna. Esse momento do quarto capítulo produz um dos melhores momentos da quarta temporada.
Isso porque a missão de salvá-la cria um instante no qual há verdadeira urgência, o que por si só aumenta nossa atenção. Além disso, a edição é muito caprichada ao alternar entre a Max com o Vecna, o relato do Victor Creel e o esforço dos amigos tentando fazê-la acordar. Ao criarem uma percepção de autenticidade naquele contexto, os ótimos efeitos visuais também contribuem na imersão do espectador naquele e em outros momentos no mundo invertido.
Também não dá para falar sobre essa cena sem mencionar a ótima escolha de “Running Up That Hill (A Deal with God)”, canção que voltou a fazer sucesso em todo mundo após a série. A letra na qual Kate Bush diz que faria um acordo com Deus “e o convenceria a trocar nossos lugares” combina com a trajetória da personagem, uma vez que a Max perdeu o irmão na temporada anterior.
O desfecho do sétimo episódio, último do primeiro volume dessa temporada, se apresenta como um dos instantes mais importantes de toda a série. De uma só vez, a caprichada revelação da origem do Vecna mata a antiga curiosidade sobre quem seria o Um, esclarece que não foi a Onze quem exterminou os demais, além de trazer uma reviravolta no caso Victor Creed.
Recém-lançado, o segundo volume encerra a temporada com momentos que ficarão marcados na memória dos fãs da série. A luta para derrotar o Vecna — numa missão ao mesmo tempo arriscada e bem planejada — prende o fôlego de qualquer um que se importe com os personagens. Porém, a maneira como isso se encerra fica parecendo um remendo no roteiro, no intuito de garantir a quinta temporada.
Essa impressão é decorrente do fato de que visivelmente o Vecna perde. Incendiado por Steve e Robin, ele despenca de cima da casa ao ser baleado pela Nancy. Ao bater no chão, aparece desacordado e pegando fogo. E assim, se você pensar bem, o objetivo do plano foi alcançado. Deste modo, a decisão dos roteiristas de fazê-lo sumir misteriosamente e cumprir sua promessa de atacar Hawkins é um tanto injusta com os personagens.
Nesse excelente elenco, Millie Bobby Brown se sai bem ao interpretar a Jane revivendo seu passado, no intuito de recuperar seus poderes. Porém, quem mais se destacou dessa vez foi Sadie Sink. Desde o começo, quando apresentava uma Max abatida pela perda do irmão, ela já mostrava como faria dessa a sua melhor temporada em “Stranger Things”. Intérprete do Dustin, Gaten Matarazzo demonstra estar amadurecendo como ator. Dentre os estreantes, Joseph Quinn vai muito bem ao viver o Eddie Munson, enquanto Jamie Campbell Bower é brilhante ao fazer as duas versões de seu personagem.
Alguns aspectos impedem a temporada de ser perfeita. Em certos instantes, há muita coisa acontecendo ao mesmo tempo em lugares distantes. A edição precisou fazer um certo malabarismo para colocar todos os personagens nos momentos-chave da trama, o que atrapalha a imersão nos principais focos de interesse dos espectadores. Além disso, ainda que traga ótimas locações distantes de Hawkins, no fim parece que apenas essa cidade está ameaçada, quando o problema possui uma dimensão maior.
Só que “Stranger Things” possui uma vantagem: seus pontos fortes são muito fortes. Por meio de um ótimo trabalho de ambientação, uma fotografia que ajuda dar o tom do momento e efeitos digitais caprichados, a série nos imerge em seu ótimo enredo. Depois de três anos, nós voltamos a Hawkins e em poucos minutos é como se nunca tivéssemos saído. Lá, nos importamos verdadeiramente com os personagens, porque encontramos amigos que até cresceram, mas com uma amizade que segue intacta.