Ao longo do tempo, centenas de bilhões de almas ganharam vida vindo para a Terra. Uma delas é a de Joe Gardner, um talentoso pianista de Nova York que não está satisfeito com os rumos de sua vida. Quando lhe surge uma grande oportunidade na carreira, ele falece acidentalmente. Inconformado com a própria morte, Joe tenta voltar para Terra, mas ao mesmo tempo precisa fazer com que a 22, uma alma resistente a ideia de vir nascer, enfim perceba que a vida em nosso planeta vale a pena.
“O que há antes da nossa existência?” e “o que existe depois da vida?” são perguntas que a humanidade sempre se fez. Ao assumir a missão de apresentar as respostas que quase sempre couberam as religiões, o diretor e roteirista Pete Docter retoma sua especialidade de criar universos incríveis. Anteriormente, ele já havia nos levado para uma cidade de monstros que assustam crianças durante a noite, em “Monstros S/A” (2001), e para a mente fantástica da menina Riley em “Divertida Mente” (2015).
Dessa vez, Pete gera fascínio ao transformar seu roteiro, escrito junto com Mike Jones e Kemp Powers, em uma extraordinária representação visual da dimensão Pré-Vida. Conceitos frequentemente debatidos, como se já nascemos com certas vocações e características de nossa personalidade, não são apresentados como ideias abstratas, mas sim como ambientes incríveis.
Um desses lugares conecta-se diretamente com a essência musical da obra. Trata-se de um espaço que fica entre o físico e o espiritual, onde todos nós vamos parar quando estamos num momento de conexão profunda com uma atividade. Sentado diante de um piano, Joe vive tendo esses instantes onde sua música e ele são como se fossem uma coisa só.
Ainda assim, o talento dele não é suficientemente reconhecido, restringindo o rapaz a rotina como professor de uma desmotivada classe de crianças. Até que surge a chance de Joe se apresentar junto com a consagrada Dorothea Williams, o que lhe leva a vibrar na esperança de enfim viver sua vocação.
É justamente essa oportunidade que o faz, apesar das dificuldades enfrentadas até ali, desejar driblar a morte, voltar a Terra e viver seu sonho. Entretanto, a possibilidade dele abandonar o emprego fixo desagrada sua mãe, Libba Gardner, uma vez que ela viu de perto as dificuldades financeiras do pai dele, o já falecido músico Ray Gardner.
Uma vez que a obra apresenta esses dilemas da vida adulta, nos primeiros dias após o lançamento de “Soul” surgiu uma discussão sobre se animações não deveriam ser mais voltadas ao público infantil. Ao meu ver, um debate sem sentido, pois não vale a pena limitar a arte e desperdiçar a oportunidade de obras tão bonitas como essa serem criadas.
Na versão original em inglês, o ator Jamie Foxx doa completamente sua voz ao Joe, de modo que o desespero do protagonista diante das sucessivas complicações soa muito natural. Essa mesma naturalidade é vista em 22, cuja voz foi interpretada por Tina Fey. A atriz entrega brilhantemente a “voz de mulher branca de meia-idade” escolhida pela personagem para irritar os outros. Muito da comicidade da narrativa vem através do trabalho dela, especialmente quando uma tentativa do Joe de voltar ao próprio corpo dá errado.
O protagonista e uma de suas alunas trazem o jazz não apenas como um ótimo ritmo musical, mas como uma força que toca na alma e lhe motiva a seguir em frente. Ao longo da trama, os nossos sentimentos também são tocados, afinal “Soul” segue um padrão recente da Pixar ao nos trazer lágrimas. Entretanto, não as traz maneira forçada, pois a maneira como a história nos emociona faz sentido para o arco narrativo de seus personagens.
“Soul” não é um filme que acaba quando os créditos se encerram. Ele fica com você, te levando a pensar se o desfecho do Joe foi o mais apropriado ou deveria ser diferente. Em muitos momentos lhe leva a refletir sobre como você vem vivendo a própria existência. E ensina a todos nós sobre qual é o verdadeiro propósito da vida.