Pouco após perder o marido por quem era apaixonada, a Fern (Frances McDormand) se viu numa situação inesperada: sua cidade acabou. Localizada no interior do estado americano de Nevada, a pequena Empire ficou totalmente inabitada depois de uma importante fábrica de gesso fechar. Diante disso, ela junta em uma van aquilo que possui de mais significativo e parte dali. Seu destino é o mesmo de milhares de outras pessoas: morar dentro de um veículo e rodar pelo país obtendo empregos temporários.

Em 2017, a jornalista Jessica Bruder lançou um livro chamado “Nomadland”, no qual apresenta pessoas que levam uma vida itinerante para sobreviver nos Estados Unidos. Após ler a obra, Frances McDormand e Peter Spears decidiram adquirir os direitos de produzir uma adaptação para o cinema. Ainda faltava alguém para a direção, mas depois de assistirem ao faroeste “Domando o Destino” (2017), os produtores entenderam que Chloé Zhao era o nome certo.

Ao assumir o filme, a diretora chinesa também se encarregou do roteiro e fez viagens para conhecer as pessoas mencionadas no livro. A partir daí, concluiu que sua protagonista fictícia teria as características de duas mulheres: Linda May e Swankie. Também entendeu que elas e os demais nômades não poderiam ser interpretados por ninguém que não fossem eles mesmos, mesclando histórias verdadeiras de suas vidas com alguns eventos fictícios.

Quem nos apresenta a todas essas pessoas reais é a Fern. Ganhando o suficiente para sobreviver, a recém-viúva encara a nova fase com dignidade. Conforme ela bem define, não possui mais uma casa, mas ainda tem um lar. Apesar do novo estilo de vida apresentar suas dificuldades, ela utiliza o momento para usufruir de sua liberdade, conectar-se com a natureza e criar boas relações com quem encontra pelo caminho.

Sem precisar de qualquer alteração em sua aparência, Frances McDormand some completamente ao entregar seu corpo para a Fern. A atriz apresenta alguém cuja postura mostra a disposição para seguir em frente. Uma vez que é uma boa ouvinte e está sempre pensativa, a personagem também diz muito através de seu olhar. A voz dela quase sempre é tranquila, mas nos raros momentos onde a paciência acaba, a irritação vem à tona trazendo consigo algum grau de autocontrole.

Nos vários momentos de introspecção da protagonista, seja dentro de seu veículo ou caminhando sempre próxima a uma bela paisagem, a fotografia se destaca. A iluminação natural é valorizada, seja em um lindo céu de fim de tarde ou numa simples fresta de luz entrando na van e tocando o rosto da Fern. Planos que captam o ambiente de forma panorâmica são prestigiados, por ressaltarem as mudanças de locais e enquadrarem a personagem de corpo inteiro, enfatizando seu isolamento quando ela está sozinha.

Por alguns motivos, as histórias de vida dos amigos que a Fern faz pelo caminho são contadas com muita naturalidade. A primeira razão é que muito do que é dito de fato é uma verdade na vida de quem está falando. Mas essa não é a única justificativa. É notório como se construiu uma conexão real entre aquelas pessoas e a Frances McDormand. Em uma cena de despedida, há um abraço que visivelmente é um adeus verdadeiro de duas pessoas, o que traz muita autenticidade para o filme.

Acrescento ainda o fato de que esses são indivíduos esquecidos pela sociedade americana, enxergados por muitos como losers (perdedores). Enquanto isso, “Nomadland” vê seus personagens reais como cidadãos que merecem ser respeitados, pelo que fizeram ao longo da vida e por sua conduta íntegra diante das dificuldades. Deste modo, essas pessoas viram no longa-metragem uma oportunidade de expressarem sua verdade sobre quem são, além de mencionarem o que aquele país fez com elas.

Aqui, o capitalismo é alvo de uma verdade assustadora: bastou uma fábrica fechar para uma cidade inteira acabar. Enquanto isso, por todo um país e depois de contribuírem ao longo da vida, muitas pessoas não encontram em suas aposentadorias o mínimo para sobreviver, após perderem seus empregos durante uma crise financeira. Ao mesmo tempo, o longa-metragem enaltece o desprendimento material, a conexão com a natureza e o valor do convívio social, aspectos característicos da cultura hippie.

Ao valorizar a força humana para recomeçar quando o justo já seria o descanso, “Nomadland” apresenta uma mulher que se reinventa após perder quase tudo, menos a si mesma. Seu ritmo é apropriadamente lento para favorecer o encontro de pessoas reais com uma protagonista interpretada brilhantemente. Sempre aprendendo uns com os outros, o maior ensinamento dos personagens está na despedida para encarar a estrada, sem medo do que vier e certos de que se encontrarão de novo pelo caminho.