As apresentações de Billie Holiday (Andra Day) não reúnem apenas seus fãs. Na plateia, agentes federais estão a postos para prendê-la caso cante “Strange Fruit”. A canção denuncia o linchamento de pessoas negras no sul dos EUA, o que incomoda quem, por razões racistas, não cumpre seu dever de proteger a todos. Ao lembrarem que a cantora possui um vício em heroína, as autoridades que a perseguem encontram uma forma de lhe tirar dos palcos.
Conhecido principalmente por “O Mordomo da Casa Branca” (2013) e “Preciosa: Uma História de Esperança” (2009), o diretor Lee Daniels conta nesse filme uma parte importante da vida de Lady Day, apelido pelo qual a artista também era chamada. Perseguida por não se eximir de posicionamentos antirracistas, ela era vista como inadequada em comparações com cantoras como Ella Fitzgerald e Marian Anderson, mas também tinha o apoio de um público fiel.
Ao contrário do que possa parecer, a obra mantém um certo distanciamento daquilo que a protagonista pensa, pois não acompanhamos tudo do ponto de vista dela. Um exemplo disso é a perseguição conduzida pelo Departamento Federal de Narcóticos, sob a liderança de Harry Anslinger (Garrett Hedlund). Essa conspiração é muito mais vista pela perspectiva de Jimmy Fletcher (Trevante Rhodes), um agente federal com quem a cantora manteve uma relação de altos e baixos.
Mesmo nos momentos onde ela está presente, como nos bastidores de shows e em seus relacionamentos, os acontecimentos são exibidos como se a única preocupação fosse só mostrar o que ocorreu em sua vida. Assim, seus pensamentos e sentimentos pouco são procurados pela narrativa. Eles aparecem majoritariamente através de suas apresentações, onde a artista colocava a alma em sua voz.
Certas situações são antecipadas para os espectadores antes de ocorrerem, como por exemplo, quando policiais entram em um quarto de hospital onde a cantora se recupera. Caso o espectador não tivesse sido avisado que aquilo ocorreria, teríamos sentido junto com a personagem aquela violação de um momento de convalescência, acompanhando o fato sob a perspectiva dela e não como meros observadores externos.
Apesar desse equívoco narrativo, graças à atuação de Andra Day, o filme consegue expressar as emoções vivenciadas pela artista que era perseguida, lidava com um vício e tinha relacionamentos conturbados. Diante da plateia, vemos na cantora um olhar firme, como se ela dissesse ‘gostem ou não, esta sou eu’. Ao cantar, a atriz imprime a voz envolvente e leve que consagrou Billie Holiday.
Fora dos palcos, Andra Day entrega ainda mais que a voz e o olhar. A cada cena, ela apresenta a postura necessária para expressar as lutas de Billie. Quando a protagonista descobre que sua casa seria revistada, por exemplo, a atriz assume a postura desafiadora de uma mulher que decide ficar nua, no intuito de mostrar aos investigadores que não tinha nada da esconder.
Dentre os atores coadjuvantes, quem mais se destaca é Trevante Rhodes ao interpretar o agente Jimmy Fletcher. Usado por indivíduos brancos para capturar a Lady Day, o rapaz negro não é compreendido nem mesmo por sua mãe. O ator representa muito bem esse personagem um tanto enigmático, capaz de deixar os espectadores e até mesmo a Billie sem saberem de qual lado ele realmente está.
Em meio a tudo isso, nós encontramos um filme visualmente belíssimo. Nos palcos, sempre há um holofote evidenciando o amor da Billie por aquele local, onde ela usa figurinos elegantes, um batom vermelho e penteados caprichados. Já em sua casa ou mesmo nos camarins, os ambientes cheios de flores disfarçam as angústias que ela carrega consigo. A única incongruência visual é o desnecessário uso do preto e branco em alguns momentos, pois já havia uma autenticidade estabelecida, de modo que simular uma gravação antiga só gera uma distração que lhe tira o foco da narrativa.
Ainda que não possa desfazer as injustiças cometidas contra ela ao longo da vida, “Estados Unidos vs. Billie Holiday” pode ser visto como uma retratação histórica da sociedade americana, por evidenciar como essa perseguição foi algo institucionalizado, além de mostrar que ela precisava de um tratamento e isso não lhe foi concedido. Deste modo, a Lady Day é exaltada não só pelo seu talento como artista, mas por pisar nos palcos com uma coragem que muitos ainda hoje não possuem.
O problema é que isso é feito de um modo um tanto formulaico. Um exemplo é a entrevista criada para introduzir a história, mas que depois fica esquecida em grande parte da trama. Ou o uso excessivo de apresentações da cantora para fazer transições em uma narrativa pouco coesa. Por questões assim, essa ainda não é a biografia que a Billie Holiday merece, mas por contar com uma atuação incrível e conseguir demonstrar como ela foi injustiçada, a obra possui o seu valor.