Durante suas idas a bares, Cassandra Thomas (Carey Mulligan) frequentemente ouve frases como “essas garotas se põem em perigo” e “ela está pedindo por isso”. Logo depois, algum cara mal-intencionado chega e lhe pergunta: “aceita um outro drink?”. Visivelmente embriagada, sempre acaba sendo levada para os quartos de aproveitadores. Mas nem tudo é o que parece, pois ela logo assusta os canalhas provando estar totalmente sóbria.
Estreando como roteirista e diretora de um longa-metragem, Emerald Fennell apresenta uma trama que nos cativa desde o início. Ao conhecermos a vida da Cassie, apelido pelo qual a protagonista é conhecida, nossa curiosidade é imediatamente aguçada. Nos perguntamos tanto sobre qual a motivação para sua rotina noturna, quanto sobre o que levou aquela moça a abandonar uma faculdade de medicina e tornar-se recepcionista de uma cafeteria.
Em um começo com ótimo ritmo, as razões da Cassie são apresentadas alternando a vida familiar, a rotina no trabalho e os sustos nos abusadores. Quando achamos que já a conhecemos bem, ela toma conhecimento de fatos felizes na vida de quem lhe causou uma dor profunda. A partir daí, a protagonista nos surpreende a todo tempo, porque simplesmente não conseguimos antever seus próximos passos.
A trama se desenvolve bem até o filme derrapar no clímax. A Emerald Fennell fez a Cassie tomar uma decisão questionável, pois se alguém pode alcançar seus objetivos com um esforço mínimo, tomaria riscos? Se é capaz de tirar da frente vários de seus potenciais problemas, deixaria de neutralizar um deles? Depois de um filme inteiro onde a inteligência aparece acima da vingança, não soa conveniente subverter isso apenas para levar a personagem aonde a roteirista quer?
O clímax de um filme não é uma mera cereja do bolo. É verdade que ele pode reafirmar a força de uma mensagem, por mostrar até onde cada um dos envolvidos é capaz de ir. Mas esse momento também dita se você sairá de uma sala de cinema e dirá para seus amigos verem o filme, o que amplifica o pensamento da obra sobre questões sociais. O clímax é o sabor do bolo e sua receita não requer apenas apoteose, mas também coerência.
A Cassandra é uma personagem inicialmente enigmática e a razão para isso não é um desejo de fazer mistério, mas o fato dela nos transmitir muita coisa simultaneamente. A ótima interpretação da Carey Mulligan faz com que todo peso do passado seja visível até mesmo em momentos felizes. Em um único olhar conseguimos ver ressentimento, ironia, amor e revolta.
A competência da atriz não se restringe a isso. Ela faz a Cassie ser ao mesmo tempo uma mulher forte, calejada por uma vivência dura, mas também enfraquecida por dentro ao carregar uma culpa que não é dela. Seja parecendo embriagada para depois assustar um cafajeste ou sentada diante de uma reitora, ela fará quem está errado entender seu erro. Para isso, a Carey Mulligan faz sua personagem estar sempre tranquila e segura de si, convicta de que vai provar seu ponto e mudar aquela pessoa dali para frente.
Dentre os atores coadjuvantes, Bo Burnham se destaca ao interpretar Ryan Copper, personagem com quem a Cassandra se relaciona. O ator consegue fazer com que o público se afeiçoe pelo rapaz, além de lamentar por ele em uma cena onde a Cassie vacila. Em alguns dos momentos onde os dois estão juntos, a protagonista demonstra estar bem feliz. E vendo ela assim, inconscientemente projetamos como a Cassie era junto com outra pessoa muito querida. Vemos a alegria que lhe foi tirada.
O peso da vivência passada não aparece apenas no roteiro e na atuação de Carey Mulligan. A trilha sonora, por exemplo, apresenta uma versão recente de “It’s Raining Men”, canção clássica da década de 80, mas que na nova gravação se encaixa tão bem que até parece cantada pela protagonista. Versátil, a trilha também sabe trazer leveza utilizando “Stars Are Blind” da Paris Hilton.
A fotografia destaca-se especialmente ao acompanhar a Cassie sozinha, seja quando ela anda solitária e descalça na rua ou está pensativa em seu quarto escuro. Algumas tomadas mais longas nos permitem compreendê-la tanto nos momentos onde sente-se empoderada, como quando ver algo terrível lhe deixa profundamente abalada.
Quase todos que têm contato com a Cassandra em algum momento lhe acham louca. E isso tem uma razão: ela desafia visões estabelecidas. É vista como estranha por aproveitadores ao colocar-lhes diante de sua canalhice. Também não é compreendida por um certo tipo de homens, daqueles comumente encontrados dizendo a frase “eu não estava fazendo nada”, após testemunhar passivamente uma mulher ser agredida.
E ela não para por aí. De forma corajosa, inteligente e sem distinção de gênero, Cassie machuca com a verdade aqueles anteriormente convictos de terem feito a coisa certa. Assim, a trama segue sempre como um drama onde essa jovem imprevisível mantém um clima de suspense, sem deixar de trazer certa comicidade por tratar-se de uma vilania do bem.
Uma forte mensagem à sociedade é entregue, pois apesar do desfecho conter vários pontos questionáveis, ele funciona bem como uma metáfora. Trazendo situações boas de se ver, mas também outras duras de assistir, o filme se prova uma experiência necessária a todos. Por fim, resta o desejo de que cada um que assistiu a obra aprenda com a Cassie e pense: se alguém como ela aparecer na minha vida, eu lhe acharia uma louca?