Esse texto contém spoilers.
Carrie (Sissy Spacek) não possui com quem compartilhar suas dúvidas, receios, pensamentos ou alegrias. É solitária na escola e em casa, onde é criada pela fanática religiosa Margaret White (Piper Laurie). Durante um banho no vestiário da escola, a adolescente entra em desespero ao menstruar pela primeira vez. Ela nunca havia sido preparada para aquele momento, o que gera zombaria das colegas. Já a mãe trata esse fato como um castigo divino aos supostos pecados da filha. O que ninguém sabe é que a garota também passou a possuir uma habilidade sobrenatural.
Autor de dezenas de livros, Stephen King teve essa personagem como sua primeira protagonista. Sua publicação de estreia no mercado literário foi adaptada para o cinema dois anos após a primeira tiragem. Porém, ele não teve qualquer direito de interferência no roteiro que foi escrito por Lawrence D. Cohen. Apesar disso, gostou muito do resultado do filme, assistido por ele numa sessão especial apenas uma semana antes do lançamento. E de fato era difícil ele não aprovar.
O clássico do terror dirigido por Brian De Palma conquista o público especialmente por iniciar-se como um drama, onde uma adolescente é oprimida ao ponto de o espectador compadecer-se dela. Depois adiciona-se o suspense: sabemos que a Carrie será humilhada no baile. Além da própria história, o cartaz e o trailer do filme deixavam isso claro. E então nos perguntamos o que vai acontecer no instante em que a jovem for desmoralizada.
Mas até chegarmos lá, a história é bem construída para levar a esse momento. Há uma recusa inicial da protagonista quando convidada, a professora desconfia de algo estar errado e Margaret diz que a filha seria alvo de risadas. No baile, tudo se encaixa para uma noite perfeita. Quando Carrie e Tommy Ross (William Katt) dançam, a câmera acompanha o momento enquadrando somente eles, pois naquele instante ninguém mais importava.
Então chega a hora onde todas as peças ficam posicionadas: os poderes dela estavam devidamente comprovados, mas ao mesmo tempo não eram controlados em situações de fúria. Somado a isso, todos os membros do colégio estavam presentes em cena num ambiente fechado. Então, sob um belo vestido claro, derramou-se o sangue de um porco, animal considerado impuro em trechos da bíblia.
O terror vem à tona. O vermelho não se restringe a vestimenta encharcada e logo ilumina todo lugar. Um som de tensão é colocado ao fundo dos gritos de desespero quando as portas se fecham. As imagens mudam mais rápido expressando o tumulto, a tela chega a ficar dividida entre o pânico instalado e a Carrie, de olhos esbugalhados, causando o caos aonde sua visão se fixar.
Os cortes são ainda mais rápidos quando, já fora da escola, tentam atropelar a garota, que faz o carro com Chris Hargensen (Nancy Allen) e Billy Nolan (John Travolta) capotar. Vale lembrar: essa velocidade na alternância de imagens, em planos abertos e fechados, gerando muita coisa para processar numa época onde as pessoas não eram acostumadas a isso, aumentava ainda mais a imersão do espectador na tensão da cena.
A aflição continua mesmo quando tudo se acalma momentaneamente. A expectativa passa a ser pelo reencontro de Carrie com a mãe. Antes disso, a adolescente toma um banho, como alguém que procura purificar-se daquilo que vivenciou. Já limpa, ao ver Margaret, ela é sentenciada a morte, mas antes de morrer faz a fanática ficar de braços abertos e com as mesmas perfurações de uma figura de Cristo mantida na casa.
Compaixão, antecipação e pavor. Sentimentos cuidadosamente construídos e expressados, pois Brian De Palma alcança uma ótima sintonia entre som, movimentação da câmera, montagem, figurino, direção de arte e atuações. Ao ponto de que, se o filme fosse visto sem o áudio do que é dito pelos atores, ainda se manteriam as sensações causadas no público. Há apenas uma ressalva na trilha sonora, pois a replicação dos mesmos acordes da cena do banheiro de “Psicose” (1960) faz o filme perder um pouco de sua identidade própria.
Sissy Spacek desenvolve uma personagem cujo principal traço é a vulnerabilidade. A partir daí passeia pelo que a cena pede. Ao conversar com a professora Collins (Betty Buckley), nós vemos timidez e inocência. Quando a mãe arrasta a garota para orar e define sua menstruação como a “maldição do sangue”, assistimos a um desespero indefeso. Depois, ao usar seu poder para impor a ida ao baile, Carrie ainda demonstra ser alguém vulnerável, cujas ações são meramente defendendo a própria liberdade.
Na festa, Sissy expressa através do olhar uma alegria momentânea, mas que mantém essa característica frágil ao mostrar a adolescente como uma espécie de Cinderela, saindo de uma realidade de rejeição para um instante de deslumbramento. E o ápice da atuação da atriz, indicada ao Oscar por esse filme, é ao exibir perplexidade. Se na cena da menstruação a personagem mostra desespero e anda em busca de ajuda, ao estar coberta de sangue fica estática e com os olhos arregalados.
Indicada ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante, Piper Laurie teve uma performance brilhante. Uma pessoa fanática religiosa possui convicções fortes, fala com certeza e acredita que atitudes duras são para um bem maior. E a atriz passa muita segurança ao colocar essas características em cena.
Além disso, conforme já disse, a sintonia entre os vários aspectos do filme favorece a obra, tendo a atuação dela sido privilegiada nesse sentido. O ângulo de câmera transmitindo o poder sobre a filha, a decoração da casa e a roupa escura contribuem para construção de nossa percepção sobre Margaret.
Ainda falando de atuações, vale lembrar que esse foi o primeiro grande filme no qual John Travolta atuou, aos 22 anos de idade. Assim como ele, os outros atores que interpretaram os estudantes não eram mais adolescentes. William Katt, ao fazer o par de Carrie no baile, tinha 25 anos. Durante as filmagens em que fez a ótima vilã Chris Hargensen, a atriz Nancy Allen completou 26, apenas três anos mais jovem que Betty Buckley, a professora Collins. Essa estranha prática de Hollywood só mudaria na década seguinte.
Por mais que o desfecho permita uma possível interpretação moralista, na qual tudo aquilo é causado pelo fato de a filha não ter obedecido a mãe, o filme produz um final impressionante porque seu terror é baseado em elementos rotineiros. Toda escola tem alguém reprimido pela criação dos pais, uma aluna que apronta para cima das outras, uma professora bacana e uma festividade esperada com grande expectativa ao longo do ano.
Exceto pelo pesadelo de Sue (Amy Irving), todas as cenas que geram espanto não aparecem com um intuito de causar sustos. Não há ali um grande monstro ou um vilão mascarado. O caos se instala a partir de uma garota que, apesar de ser definida como estranha, na verdade era bem comum até que seus poderes emergissem. Quando isso ocorre, alguns pilares sociais importantes viram alvos: a vida escolar, familiar e religiosa. Ao colocar um pé no exagero do sobrenatural e outro nos problemas da realidade, o filme produz terror verdadeiro.