Desde quando ela ainda estava em um carrinho de bebê, o mundo já olhava estranho para Estella. O cabelo dividido entre o preto e o branco a tornava um alvo dos colegas na escola, mas seu temperamento forte lhe levava a reagir com força, o que logo gerou sua expulsão. Pouco depois, um trauma ainda maior afetaria sua vida e lhe causaria um sentimento de culpa. Já crescida, a moça coloca suas esperanças no talento para a moda, mas descobertas chocantes trazem de volta sua versão Cruella.

O cinema sempre apresentou narrativas contadas do ponto de vista dos vilões. Entretanto, um fenômeno recente são as histórias das origens de malvados notáveis, mas que sempre ficaram em segundo plano, como a Malévola de “A Bela Adormecida” e o Coringa das aventuras do Batman. Agora chegou a vez de Cruella, personagem criada por Dodie Smith para o livro “Os 101 Dálmatas” (1956).

Anteriormente vista no cinema na adaptação animada de 1961 e nos filmes em live-action de 1996 e 2000, a personagem sempre pareceu muito caricata em sua obsessão pelos dálmatas. A nova obra comandada Craig Gillespie — diretor de filmes como “Eu, Tonya” (2017) e “A Garota Ideal” (2007) — tinha como uma de suas missões apresentar justamente a motivação para essa extravagante vilania. Nesse aspecto, o filme acerta muito. A maneira como a Cruella tem seu primeiro contato com os dálmatas é impactante, numa forma muito surpreendente para uma produção da Disney.

Mas aqui os animais são os coadjuvantes, pois o que se destaca são as duas personalidades da protagonista. Na predominância da Estella, observamos uma moça machucada, mas obstinada em ter seu talento reconhecido. Quando situações e descobertas a irritam, sua versão Cruella prevalece trazendo características negativas, como insensibilidade e sede de vingança, mas também uma postura revolucionária, capaz de cativar o espectador.

Nos primeiros minutos, a protagonista é interpretada pela atriz-mirim Tipper Seifert-Cleveland. Ela transmite apropriadamente a postura aborrecida da garota, além de ir bem em instantes de deslumbramento, choque e tristeza. Quando a Emma Stone assume a personagem em sua idade adulta, ela entrega uma das melhores atuações de sua carreira, principalmente por sua grande contribuição na atribuição das características que distinguem as duas versões da jovem estilista.

Sim, o roteiro aponta quais atitudes a moça toma em cada uma de suas personalidades. É verdade que os figurinos e as maquiagens ajudam a demonstrar como a Estella é comedida, enquanto a Cruella sempre se destaca. Mas é a Emma Stone quem verdadeiramente expressa as diferenças. Enquanto uma fala, olha e reage de forma reprimida, mesmo enquanto está sendo proativa, a outra demonstra possuir convicção. A atriz ainda imprime sempre um ar de mistério sobre o que está por vir, o que dá unidade para essa personagem instável.

Interpretando uma mulher que pouco a pouco vai ganhando importância na trama, Emma Thompson capricha na postura séria, autoconfiante e esnobe da Baronesa, a renomada estilista que contrata a promissora Estella. Os diálogos dela com a Emma Stone são sempre muito bons. Por sua vez, encenando os amigos que ajudam a protagonista, os atores Joel Fry e Paul Walter Hauser nos divertem, apesar de seus personagens serem resumidos a trapaceiros servis.

Se o roteiro acerta nos motivos que fazem a Estella virar Cruella, não dá para dizer o mesmo da maneira como essa história é contada. Principalmente no início, a narrativa é preguiçosa, pois nos conta através da narração certas coisas que deveriam ser mostradas ou reveladas através de diálogos. Além disso, Jasper e Horace conseguem aprontar de tudo e sem grandes dificuldades.

A ambientação do filme é maravilhosa, não apenas por nos situar bem na Londres da década de 70, mas por caprichar muito nos ambientes internos. A fotografia e a equipe de efeitos visuais contribuem nesse intuito em um belo plano-sequência, no qual nos é apresentada “a loja de departamentos mais elegante da cidade”. A cena diverte e nos expõe a condição na qual a protagonista se encontra.

Como não poderia deixar de ser em um filme onde a moda é parte crucial, os figurinos se destacam positivamente. Ao longo da obra, nós vemos várias peças de alta-costura que intencionalmente não chamam muita atenção, pois as roupas desenvolvidas por Estella e as vestidas pela Baronesa deveriam se destacar. Quando a Cruella passa a criar trajes no seu estilo, isso é apresentado numa boa mistura de elegância e extravagância. Para além disso, as vestimentas dos personagens e dos figurantes parecem bem adequadas para a época e o clima de Londres.

O filme consegue te fazer torcer por uma personagem que você jamais imaginou, apresenta uma ótima origem para ela e conquista sua atenção, mas não é tão bom quanto poderia ser, pois alguns planos funcionam com muita facilidade. Mesmo com o roteiro apresentando essas conveniências e podendo ser questionado por certas decisões, o filme entretém e marca o espectador.