Esse texto contém spoilers. 

Winden tinha tudo para ser um lugar imune a grandes acontecimentos. Por ali todo mundo se conhece, seja por ter estudado junto, pelos filhos que são amigos ou mesmo em razão do trabalho na usina nuclear. Mas coisas estranhas acontecem nessa pequena cidade do interior da Alemanha. De uma hora para outra as luzes podem começar a piscar. Os pássaros caem do céu, dezenas de ovelhas morrem e garotos desaparecem de forma repentina.

Uma dessas crianças é o Mikkel Nielsen (Daan Lennard Liebrenz), um menino fascinado por mágica. Seu sumiço mexe numa ferida antiga de seu pai, Ulrich Nielsen (Oliver Masucci), que já havia vivenciado o desaparecimento do irmão nos anos 80. Enquanto o garoto sumia, uma carta era aberta por Ines Kahnwald (Angela Winkler), uma senhora ainda enlutada pelo suicídio de seu filho de criação, Michael Kahnwald (Sebastian Rudolph).

A correspondência continha um recado claro: não podia ser aberta antes daquele momento, 22h13min de 4 de novembro de 2019. A carta dirige-se não a Ines, mas ao seu neto Jonas (Louis Hofmann). No texto, Michael diz desejar que sua decisão seja entendida e que sua verdade é que ele, naquele dia após meses de seu falecimento, fez uma viagem no tempo para 1986. Michael Kahnwald era Mikkel Nielsen.

“Dark” é a primeira série original da Netflix na Alemanha. Foi dirigida por Baran bo Odar que a idealizou junto com Jantje Friese. Ela por sua vez roteirizou os dez episódios da primeira temporada com a colaboração de Martin Behnke, Ronny Schalk e Marc O. Seng, cada um deles em três episódios. A obra é um dos maiores produtos audiovisuais já produzidos com relação a viagens temporais.

A série que vai e vem por 2019, 1986 e 1953 nos apresenta muitos personagens. Alguns deles chegam a serem vistos em três épocas diferentes. Assim, os editores Robert Rzesacz, Anja Siemens, Denis Bachter e Sven Budelmann tiveram uma importante missão: ao mesmo tempo evitar que fosse difícil compreender quem era quem, mas também, por alguns instantes, manter um mistério sobre qual dos personagens que já conhecíamos era aquele cujo passado está sendo mostrado. E foram bem sucedidos nesse objetivo.

Entretanto, para muitos espectadores foi difícil assimilar os graus de parentesco entre alguns personagens, devido a confusão causada pela viagem de Mikkel para o passado. Por outro lado, nossa própria desorientação para entender essas inusitadas relações familiares nos coloca no lugar do confuso Jonas. O jovem simplesmente descobre ter convido com o pai em sua versão infantil, que o amante da mãe na verdade é seu avô e que sua namorada Martha (Lisa Vicari) é sua tia!

Além da originalidade do roteiro e da competente edição, “Dark” acerta muito na escolha do elenco. Uma vez que era necessário apresentar um mesmo personagem em diferentes épocas, os atores que interpretariam uma mesma pessoa precisavam ser parecidos. E mais do que isso: precisavam representar de maneira similar as características próprias daqueles personagens, que permaneceriam ao longo dos anos.

Essa unidade é alcançada, graças a preocupação do diretor de construí-la e a capacidade de atuação dos atores. Tomo como exemplo a chefe de polícia Charlotte Doppler, interpretada na idade adulta por Karoline Eichhorn, enquanto na adolescência é representada por Stephanie Amarell. Ambas acrescentam a personagem um olhar introspectivo e analítico muito forte. A Karoline inclusive protagoniza uma das melhores cenas da temporada, sem dizer uma única palavra, somente transmitindo perplexidade ao ver seu colega de trabalho em um jornal de 1953.

O Ulrich é um dos personagens centrais na trama. Sua desesperada busca por Mikkel nos faz acompanhá-lo por suas investigações pessoais que lhe levam até a invadir a usina nuclear e um hospital. Essa última investigação é em busca da versão já idosa do Helge Doppler, interpretado por Hermann Beyer. Nessa procura acompanhamos seu retorno até 1953, onde presenciamos duas cenas interessantes com o personagem:

A primeira é quando ele simplesmente encontra sua avó Agnes (Antje Traue) e seu pai Tronte (Joshio Marlon). Por si só esse estranho encontro, que lhe faz sair correndo, já seria peculiar. Mas há outro significado para essa cena quando lembramos ele já havia vivido uma situação assim, mas sem saber. Isso porque o filho dele, Mikkel, logo após ter viajado no tempo também se encontrou com o próprio pai, no caso a versão de 1986 do Ulrich (Ludger Bökelmann). Mas o rapaz não reconheceu a criança, afinal o garoto só nasceria muitos anos depois.

A outra cena é dura. Trata-se da decisão do Ulrich de matar as pedradas o pequeno Helge Doppler, agora representado por Tom Philipp. Podemos sentir o dilema do personagem entre fazer ou não aquilo. Ele está absolutamente consciente da gravidade de seu ato, mas acredita que isso pode evitar os desaparecimentos. A dúvida se faria aquilo acaba quando o garoto diz que os pássaros são bonitos quando estão mortos. Uma frase aleatória de uma criança, mas que trazida pro contexto de Helge ser suspeito do sequestro de Mads em 86, e talvez de Mikkel em 2019, dá a entender que o garoto tem uma índole ruim, culminando na terrível decisão de um pai desesperado.

O Ulrich demora a fugir e nós espectadores ficamos agoniados em vê-lo parado, mesmo entendendo que isso ainda fosse justificado por uma tentativa assimilar o que havia acontecido. E claro, a demora dele em voltar logo a 2019 culmina na sua prisão. Além disso, reforçando a força do destino sobre os acontecimentos da série, Helge sobrevive. Mas as pedradas que levou parecem afetar sua cabeça.

Vindo de uma família de posses, Helge aparenta ter perdido tudo que herdou ao viver uma vida muito modesta em 1986. Permite-se ser manipulado pelo Noah ao ponto de ajudá-lo a usar crianças como cobaia. Já idoso, quando se dá conta dos erros, sua tentativa de corrigi-los é buscando matar sua versão mais jovem, mas sua senilidade lhe leva a escolher fazer isso através de um acidente de carro, do qual sua versão mais jovem obviamente sobreviveria.

E então chegamos ao Jonas. Seu protagonismo na série é construído de maneira bem gradual. De início, ele aparece como um jovem traumatizado pela morte do pai, fato que lhe causa pesadelos e até alucinações. Sua roupa traduz seu estado de espirito através de trajes escuros que demostram seu luto, que está sempre ali, ainda que encoberto por uma capa amarela, cor que nesse caso representa uma falsa alegria.

“Dark” prepara ótimos dilemas para Jonas. O primeiro é quando ele vai até 1986 e precisa decidir entre resgatar seu pai, propiciando a ele uma vida na época correta junto de seus pais e irmãos, ou garantir a própria existência, uma vez que seu nascimento é ocasionado somente pela relação que o Mikkel constrói ao recomeçar sua vida no passado.

Convencido pelo Jonas adulto (Andreas Pietschmann) de que deveria deixar o pai no passado, ele retorna a 2019. Antes abalado pela morte e agora por abandonar o Mikkel, Jonas passa viver uma crise existencial por acreditar que sua vida é um erro causado pela presença de Mikkel no passado. Ele muda de opinião e volta até 1986, quando sua tentativa de resgate é frustrada por Noah, que lhe prende e propicia outro dilema, agora vivido pelo Jonas adulto, que entende ser necessário causar um sofrimento ao seu eu do passado para que tornar-se quem ele é.

Existem muitos outros aspectos interessantes em “Dark”. Somos transportados para 1986 e 1953 através de carros de época, figurinos antigos, comportamentos e preocupações dos personagens. E vemos as reações dos personagens do passado aos objetos de nosso tempo, quando eles veem fones de ouvido, um celular e roupas com um “Made in China” na etiqueta.

Mas aquilo que há de mais profundo na série refere-se a vida de Mikkel. Além de ter vivido o infortúnio de passar a viver em uma época anterior a sua, sem seus pais, irmãos e amigos, aquele menino ao crescer e virar Michael precisou tomar difíceis decisões. A primeira delas é: evitar ou não o próprio desaparecimento? Afinal, o Michael poderia ter tomado providências que evitassem que o Mikkel fosse para aquela floresta na noite de 4 de novembro de 2019.

Ao não fazer isso, o Michael decidiu por garantir a existência do filho Jonas, que não nasceria caso o Mikkel não construísse sua vida no passado. Decisão essa que não culmina apenas na vida que ele levou, como também na própria morte. Isso porque o suicídio de Michael é diretamente relacionado a um fato: ele não gostaria de estar vivo para ver o sofrimento de seus pais com o desaparecimento de sua versão mais jovem. “Dark” é uma história do sacrifício de um pai por um filho.