Esse texto contém spoilers.
“Dark” chegou ao fim brilhando como no começo. A série criada pelo diretor Baran bo Odar e pela roteirista Jantje Friese se apresentou para última temporada com todas as características que lhe consagraram: personagens bem representados em suas diferentes idades por atores distintos. Uma direção de arte que nos imerge bem tanto em 1888, como em 1954, nos anos 80 e num futuro pós-apocalíptico.
Os efeitos especiais mantêm a história crível e a montagem sabe bem quando cortar para outra época. Mas há um aspecto que ainda consegue surpreender mesmo diante de tudo que já havíamos visto: a história, cujo desenvolvimento cresce e se impõe sobre qualquer outra discussão a respeito de “Dark”.
Parecia a sensação de estar dentro de um sonho. Depois de 18 episódios em que conhecemos os personagens que vivem em Winden, suas personalidades, índoles, atitudes e destinos, somos mergulhados em um sentimento de estranhamento. Entramos em uma realidade paralela em que a disposição dos móveis nas casas, na arquitetura da escola e até mesmo os rostos dos personagens estão invertidos.
Aqui o Jonas (Louis Hofmann) não existe. A Martha (Lisa Vicari) usa o casaco amarelo, se relaciona com outro cara e tem uma versão mais velha chamada Eva (Barbara Nüsse). O Ulrich (Oliver Masucci) abandonou a Katharina (Jördis Triebel). Ele mora com a Hannah (Maja Schöne), que está grávida, mas traí ela com a Charlotte (Karoline Eichhorn). E não é só a relação entre os personagens que mudou. Eles mudaram na aparência e no comportamento. E assim como Jonas, nós vamos descobrindo a Winden da Eva.
O que acontece ali não difere muito da Winden do Adam, aquela que conhecemos nas duas primeiras temporadas. Como bem explicou a Eva ao Jonas, as coisas podem não acontecer do mesmo jeito ou ao mesmo tempo, mas acontecem. Dentre elas, o apocalipse, que nesse novo ambiente gerou um deserto. Com exceção da Martha, não nos apegamos muito ao que acontece as pessoas daquela realidade. Nosso interesse neles é mais sobre a influência que exercem sobre os personagens do contexto que já conhecíamos.
Um exemplo disso é o que ocorre com a Claudia (Julika Jenkins), que já tinha visto sua versão mais velha, mas agora se choca ao se deparar com outra com mesma aparência, vinda da Winden da Eva para lhe orientar a manter o ciclo dos acontecimentos. Alguns episódios depois elas se reencontram e a Claudia da Winden do Adam dá um tiro na outra, para se passar por ela diante da Martha na realidade paralela, visando encontrar alguma solução para tudo aquilo.
Outros assassinatos acontecem na temporada, mas ao contrário daquele mencionado anteriormente, tratam-se de mortes lentas cuja experiência de assistir é um tanto angustiante. Assistimos ao horror do Adam sufocar a própria mãe Hannah para pegar a irmã Silja (Aurora Dervisi) e enviá-la para o futuro. Presenciamos também a Katharina, que tentava salvar o filho e o marido, ser morta a pedradas por sua mãe que não lhe reconhece mais velha.
Essa cena lembra o ataque do Ulrich ao menino Helge na primeira temporada, mas ao contrário daquela cena aqui não há um dilema em que o fim de uma vida significaria a salvação de outras. Trata-se puramente de uma violência desnecessária para trama. Soma-se a isso uma conveniente coincidência do Mikkel estar chegando em casa quase simultaneamente a isso, para dar a sensação de que a mãe dele quase conseguiu resgatá-lo. Na intenção de criar incredulidade no espectador foi escrito ali o pior momento de um ótimo roteiro.
Ainda falando da Katharina, a revelação da origem do nome dela foi um dos ótimos paradoxos estabelecidos. Na temporada anterior, ao voltar até o ano de 1954, a Hannah usa o nome da Katharina ao se passar por esposa do Ulrich. Prestes a fazer um aborto, após engravidar do policial Egon (Sebastian Hülk), ela tem contato com uma menina chamada Helene Albers (Mariella Josephine Aumann), que se tornaria mãe da verdadeira Katharina. A conversa entre as duas faz Hannah desistir do aborto e deixar para garota o colar de São Cristóvão. A criança cresce e decide dar a sua filha o nome da mulher que lhe presenteou com o pingente que usaria por décadas. Em resumo: a Katharina inspirou o próprio nome.
O desenvolvimento da história da última temporada nos mostra como os personagens se tornam suas versões mais velhas. Conhecemos, por exemplo, muitos dos acontecimentos que moldaram o Adam (Dietrich Hollinderbäumer). E a medida em que conhecemos novos fatos, muito daquilo que já vimos passa a ser ressignificado. Talvez o melhor exemplo disso seja a trajetória do Noah (Max Schimmelpfennig / Mark Waschke).
Em muitos momentos percebido como o vilão da história, agora passamos a ver o Noah como alguém que ficou absolutamente alienado pelo Adam, especialmente após o desaparecimento da filha, através da falsa promessa de um paraíso. A cena em que ele reencontra a Charlotte, que anteriormente víamos sob o olhar de uma mulher que recusava a ideia de ter um assassino como pai, ganha agora o ponto de vista de um homem que revê, já em idade adulta, aquela menina que lhe foi tirada.
Após finalmente termos uma visão ampla sobre a trajetória de todos os personagens, chegamos no início do último episódio, onde é apresentada a resposta da pergunta que nós fizemos muitas vezes ao longo de “Dark”: onde está a origem dos acontecimentos? A resolução foi feita pela versão mais velha da Claudia (Lisa Kreuzer), que decifrou a resposta de uma maneira que não ficou muito clara. Em conversa com o Adam, ela revela: a origem está em um terceiro mundo.
Antes de apontar uma solução, ela disse entender que Adam e Eva, cada um com seus objetivos, agiram por amor e que por isso fizeram coisas inimagináveis. Admitiu ter mantido os dois no escuro para que cada passo dado por eles mantivesse o nó intacto. O motivo? Ganhar tempo e encontrar um jeito da filha Regina viver. E nessa busca, ela descobriu o mundo original onde H.G. Tannhaus (Christian Steyer), ao tentar criar uma máquina do tempo visando salvar seus parentes da morte num acidente de carro, acabou gerando as duas realidades que vivenciamos até então.
A solução apontada por Claudia era aproveitar o momento em que o tempo parou, durante a explosão do apocalipse, e mandar o Jonas para outro caminho. Assim ele e a Martha do mundo invertido, em suas versões mais jovens e portanto livres dos pecados que lhes transformaram em Adam e Eva, vão até o Mundo Original e como “anjos” aparecem para Marek (Merlin Rose) e Sonja (Svenja Jung), evitando que eles morram no acidente que motivaria o relojoeiro a construir a máquina do tempo.
A sequência de cenas do encontro final do Jonas com a Martha da Winden da Eva é toda muita significativa. Primeiro porque o Jonas tinha acabado de ver a Martha do mundo dele morrer. E ela por sua vez tinha acabado de ver o Jonas morrer. Vê-los se reencontrando nesse contexto é realmente incrível. Esse momento é seguido pela Martha entendendo o que precisa ser feito e as consequências existenciais disso.
Avançamos e assistimos eles numa espécie de limbo temporal, no qual vemos os dois vendo um ao outro quando crianças. A cena não tem efeitos na narrativa da história, mas é tocante por mostrar como estavam destinados um ao outro. Por fim, os vemos salvando Marek, Sonja e a filha deles. O destino é mudado. A máquina do tempo não é criada por H.G. Tannhaus. E assim todas as versões de Jonas e Martha começam a desaparecer, acertadamente ao som de “What a Wonderful World”.
Esse final, em que alguns existem no mundo original enquanto muitos outros não seriam sequer lembrados, traz pro primeiro plano uma questão que permeia vários momentos de “Dark”: um desfecho em que a existência de alguém é apagada significa que aquele personagem não existiu? Creio que não. Porque existência apagada não significa inexistência.
No céu para o qual olhamos hoje já houveram muitas estrelas que se apagaram ao longo do tempo. Nunca vimos a sua luz, mas elas já brilharam. “Dark” nos lembra que assim como no mundo original ninguém se lembra de Jonas, Martha, Ulrich, Mikkel, Noah, Magnus, Charlotte, dentre outros, certamente um dia ninguém se lembrará da gente. Mas nós existimos.