Poucas coisas nessa vida podem ser tão ruins quanto perder a própria liberdade. Nascido em 1830, Luiz Gama foi escravizado quando tinha dez anos, após ser vendido pelo próprio pai. Longe de todos que conhecia, o menino só não perdeu o desejo de aprender a ler. Ao crescer, ele recuperou sua liberdade e conseguiu o conhecimento que tanto almejava, mas sem jamais se esquecer daqueles que ainda eram escravizados.
Na mente de muitos brasileiros, ainda existe uma percepção equivocada sobre abolição da escravatura, na qual todo o mérito desse acontecimento recai sobre a canetada de uma princesa branca. Ao contar nossa História, o cinema apresenta figuras muitas vezes pouco conhecidas, mas que ajudaram a criar as condições que culminaram em eventos transformadores.
Em “Doutor Gama”, Jeferson De — diretor de filmes como “M-8: Quando a Morte Socorre a Vida” (2019) e “Revolta dos Malês” (2021) — nos transporta ao meio do século XIX para contar a história de um dos mais importantes abolicionistas do Brasil. Roteirizado por Luiz Antonio, a narrativa conta com três atores interpretando o protagonista em diferentes fases da vida.
Em sua infância, Luiz é interpretado por Pedro Guilherme. O ator-mirim destaca-se principalmente no momento onde o garoto é vendido pelo pai. Ele coloca em cena um sentimento de incredulidade misturada com decepção, por jamais imaginar que tal abandono pudesse ocorrer. Já quando está no começo de sua vida adulta, o abolicionista é vivido por Angelo Fernandes. Ele expressa principalmente como Gama manteve sua mente livre, apesar de estar na condição de escravizado.
Na maior parte do tempo, o filme apresenta o personagem na época onde ele vinha sendo reconhecido por sua atuação jurídica, na qual utilizou as leis vigentes para libertar escravizados. Nessa fase, onde Luiz Gama já é um homem maduro, o ator César Mello lhe interpreta mostrando como o protagonista é seguro de suas ações. Através de um tom de voz e de uma postura serena, ele questiona situações absolutamente absurdas, mas tratadas como normais naqueles tempos.
Ainda que essas trocas de atores aconteçam de forma muito natural, cada um deles atua em recortes curtos da vida do protagonista. Deste modo, o filme deixa de mostrar momentos importantes de Luiz Gama. Teria sido interessante vê-lo como ouvinte em aulas do curso de direito, onde era menosprezado por ser negro e impedido de matricular-se. Além de sua carreira de advogado, ele também era jornalista e poeta, mas essas atividades não são mostradas em cena.
Acertadamente, o filme expõe o comportamento racista, expresso tanto no cerceamento de direitos, como através da postura repulsiva de quem se acha superior a alguém pela cor da pele. Isso se contrapõe a sabedoria, tranquilidade e dignidade de Luiz Gama, especialmente durante um julgamento. Ao montar seu filme, Jefferson De criou uma bela alternância entre as declarações do protagonista e as falas preconceituosas de um promotor.
Somando boas escolhas de locações e figurinos, além de uma fotografia com uma iluminação condizente à época, o longa-metragem imerge bem o espectador no período retratado. E ao apresentar satisfatoriamente esse momento de nossa História, através de um personagem tão importante, esse sem dúvidas é um filme que será visto em salas de aula.