Esse texto contém spoilers.
“Estava apavorado que a guerra acabasse antes de eu chegar”. Essa não é a frase de uma pessoa destemida. É a expressão do pensamento de uma geração de jovens ingleses que não fazia ideia do que vivenciaria entre 1914 e 1918. Muitos deles eram adolescentes de 16 e 17 anos que mentiram a idade e foram ao campo de batalha contrariando a vontade de seus pais. Em muitos casos para não voltar. Dos seis milhões de soldados mobilizados no Reino Unido estima-se que 700 mil morreram no conflito.
“Eles Não Envelhecerão” reverencia uma geração cujo sacrifício nunca foi apropriadamente reconhecido. Na época, conforme o filme relata bem, os civis não tinham a dimensão apropriada do que aqueles jovens haviam vivido. Já para as gerações seguintes, a dimensão do enfrentamento bélico da Segunda Guerra Mundial, as figuras históricas e consequências daquele conflito, além da quantidade maior de registros audiovisuais, terminaram por reduzir a importância daquela que até então era conhecida como A Grande Guerra.
Lançado em 2018, no centenário do término daquelas batalhas, o documentário é construído com base em declarações em áudio provenientes de entrevistas com militares que sobreviveram ao conflito. Relatos que descrevem a vivência daqueles acontecimentos com profundidade, porém nunca tiveram filmagens que as complementassem de maneira satisfatória. Os registros em vídeo da época possuem grande valor histórico, mas eram pouco imersivos por serem em preto e branco, com baixa resolução e sem som.
Isso até Peter Jackson, consagrado diretor da trilogia “O Senhor dos Anéis”, idealizar, produzir e dirigir esse documentário que para ele tinha uma motivação especial: seu avô, o Sargento William Jackson, participou daquela guerra. O desejo de entender melhor sobre o contexto no qual seu antepassado esteve inserido foi uma das razões para Peter buscar realizar o filme. E ao fazer isso, ele deu uma vida para aquelas imagens e nos fez ver aquele momento nunca havíamos visto antes.
O ponto mais notório nesse processo evidentemente é a fantástica colorização dos vídeos de arquivo. Isso é ainda mais valorizado uma vez que os primeiros 20 minutos, com relatos que antecedem a entrada nas trincheiras, são com as cenas no aspecto original. E quando as cores surgem as imagens mais abertas parecem muito realistas. Quem vê um trecho sem saber do que se trata acredita serem gravações originais de um material que não é recente. E quem assiste ao filme integralmente não consegue deixar de reiteradas vezes admirar o que está sendo visto.
Alguns poucos planos abertos causam uma curiosa sensação de pintura em movimento. Já nas imagens em que vemos os rostos mais de perto, a colorização é sempre notada, mas sem que isso seja um demérito, pois os rostos ganham uma humanização que imagens em preto e branco jamais propiciaram. O esmero na inserção de cores e a nossa atenção as declarações nos leva a esquecer por diversas vezes que aquilo é colorizado.
Mas essa não é a única alteração feita para nos imergir no documentário. Sabe aquela sensação de que as imagens antigas são aceleradas demais? É possível perceber isso quando soldados caminham rapidamente no início do filme. Essa impressão era causada pela menor quantidade de quadros por segundo utilizada antigamente. Peter Jackson declarou que os arquivos que ele encontrou continham entre 10 e 14 frames por segundo. Hoje em dia estamos acostumados a 24, o que torna os vídeos muito mais naturais ao que o olho humano está adaptado.
Ou seja: não adiantaria colorizar o filme mantendo a quantidade de quadros original, isso causaria estranhamento. Então foram criados frames adicionais no computador, através de softwares que desenvolveram imagens que fossem o meio termo entre um quadro e outro. E claro, também foram removidos os granulados e arranhões que os filmes fotográficos da época continuam.
Tudo isso resolveu a questão das imagens. Mas e o som? Os áudios das entrevistas não bastavam porque as cenas requisitavam que ouvíssemos o que elas mostravam. E assim, cem anos após aquelas filmagens mudas serem feitas, o que aqueles soldados disseram foi ouvido pela primeira vez. Isso porque a equipe do filme contratou especialistas em leitura labial para descobrir o que havia sido dito, depois gravou as falas com atores e inseriu no filme. Isso sem contar o acréscimo de sons adicionais, como explosões, tiros, pessoas correndo, passos de cavalos, tanques, trens, dentre muitos outros.
E então com imagens cheias de vida e possuindo seus respectivos sons, aquelas gravações que passaram anos em arquivos da BBC e no Imperial War Museum ganham a chance de serem ouvidas com a imersão apropriada. E ao escolher cerca de 1h30min de gravações em um acervo de 600 horas, Peter Jackson seleciona declarações tão detalhistas que transformam o belo trabalho com as imagens em um suporte para enfim ouvirmos aqueles soldados. Eles tornam-se nossos guias em relatos que nos colocam dentro das trincheiras para sentirmos um pouco do que foi a Primeira Guerra Mundial.
Conhecemos a mentalidade daqueles rapazes e presenciamos seu choque de realidade. Acompanhamos com riqueza de detalhes os relatos sobre as terríveis experiências as quais aquelas pessoas foram submetidas: insalubridade, convívio com ratos, o cheiro de morte, fogo amigo, perda dos cavalos, sacrifícios de conhecidos para evitar uma morte longa e dolorida, eventual uso de corpos como barricadas, dentre outras difíceis situações.
Numa guerra em permanente desenvolvimento bélico, assistimos à chegada dos tanques e ouvimos um soldado descrever a batalha na qual viu o adversário portar um lança-chamas, instrumento sobre o qual ele nunca havia ouvido falar. Conhecemos os momentos de prazer da convivência dos soldados. Ouvimos sobre suas curiosas primeiras experiências com mulheres. E logo voltamos para uma situação que faz os ferimentos serem mais temidos que a própria morte.
Por fim, depois de tudo que assistimos, vem à tona uma reflexão da guerra como algo sem uma motivação justificável. Essa compreensão não surge somente pelas vidas perdidas e por causa dos absurdos vivenciados por aqueles homens, mas também pelas imagens de convivência cordial dos soldados britânicos com os prisioneiros alemães. As cenas fazem o conflito parecer ter sido desnecessário, num exemplo de como guerras são um nefasto fruto de uma incompreensível incapacidade de diálogo.