Esse texto contém spoilers.
São seis da manhã. O repórter Phil Connors (Bill Murray), responsável pela previsão do tempo em um canal de TV, desperta para aquele que considera um dos dias mais chatos do ano: a cobertura do dia da marmota, um evento que lhe faz sair de Pittsburg para pequena Punxsutawney, onde os moradores aguardam ansiosamente por uma resposta do animal sobre a duração do inverno na região. Já mal humorado ao ver o bicho — que também é chamado de Phil — fazendo o trabalho dele de prever o clima, o jornalista ainda precisa ficar na cidade por mais uma noite, pois a estrada foi fechada devido a uma nevasca que ele ainda havia noticiado que iria para outra região.
São seis da manhã. Assim como no dia anterior, a rádio toca “I Got You, Babe” de Sonny & Cher. O radialista anuncia “é o dia da marmota! Levantem para olhar a marmota”. E logo todas as interações do dia anterior começam a se repetir. Phil a princípio parece confuso com a situação. Logo pede ajuda aos colegas que não entendem o que se passa. Uma radiografia mostra que está tudo bem com a cabeça ele. Depois de um papo frustrante com um psiquiatra, Phill ouve a seguinte ideia: “que tal nos vermos novamente amanhã?”. Horas depois eram novamente as seis da manhã do dia da marmota.
A ideia genial de prender um personagem no mesmo dia do ano e sem puder sair de Punxsutawney foi de Danny Rubin. Ele idealizou a história e desenvolveu o roteiro junto com Harold Ramis, que por sua vez dirigiu e produziu o filme. O grande acerto está no entrosamento do roteiro e da edição feita por Pembroke J. Herring. Afinal, era muito provável que uma história que acontece num dia que se repete incontáveis vezes se tornasse chata. E isso não ocorre.
Se no começo seguimos a rotina do Phil a partir do despertar, acompanhando suas diferentes reações para as mesmas interações no início da manhã, logo passamos a ver sua busca para conquistar a produtora Rita Hanson (Andie MacDowell) cortando direto de uma tentativa para outra, buscando dizer aquilo que ela gostaria de ter ouvido na ocasião anterior. Algum tempo depois, o filme passa a exibir os acontecimentos sucessivos só na situação em que há sucesso, como quando Bill salva um menino que ele sabia que iria cair da árvore e logo depois diz um cômico “você nunca me agradece”.
Através do comportamento do Phil Connors, “Feitiço no Tempo” acerta ao transmitir autenticidade em meio a situação surreal na qual o repórter vive o mesmo dia repetidamente. Ele reage como qualquer ser humano reagiria. Primeiro fica confuso a ponto de pedir que a Rita lhe desse um tapa na cara. Em seguida surge a raiva de quem não consegue ajuda e ainda por cima se dá conta de que isso lhe aconteceu na pior data possível.
Logo depois, ainda como qualquer pessoa faria, ele busca tirar vantagem da situação conseguindo uma informação num dia e aproveitando-se dela ao reviver aquele momento, seja para passar uma noite com a Nancy ou para tomar o dinheiro de um carro forte e usar aquela grana nas horas seguintes. Entretanto, o comportamento não dá certo quando Phil busca conquistar quem ele realmente quer: a Rita.
Após suas sucessivas tentativas de agradá-la, a noite perfeita para conseguir deitar-se com a moça culmina em um grande fracasso. Todo aquele encadeamento de fatos e palavras para agradá-la acabaram corretamente sendo percebidas como artificiais, tendo como único intuito levá-la até aquele quarto.
Mais do que isso: ela descreve a personalidade dele com precisão ao dizer “eu jamais amaria alguém como você, Phil, porque você não ama ninguém a não ser você mesmo”. Preso em um dia ruim e sem conseguir tirar vantagem da situação, Phil novamente tem uma reação autêntica: a depressão, expressa através do descaso com a aparência, embriaguez, arrogância acima do comum e tentativas fracassadas de suicídio.
Vivendo ali há tanto tempo e conhecendo todos os que frequentam uma lanchonete, Bill usa isso convencer Rita de que está vivendo aquela situação. E funciona. Pela primeira vez ele consegue conversar verdadeiramente com alguém sobre o que se passa com ele. Até que as seis da manhã cheguem e, como ele mesmo disse, a Rita volte a enxergá-lo como um idiota.
Então Phil finalmente entende que só há um caminho que faz com que a vida não seja uma repetição eterna: o aprendizado. E o filme usa a arte para demonstrar o conhecimento adquirido por ele durante sua prisão temporal. Acompanhamos sua evolução como pianista, vemos as esculturas no gelo que faz para encantar a Rita, além de tornar-se mais hábil com as palavras graças as poesias e livros que passa a ler.
Phil aprende também a ser menos egocêntrico e mais solidário. Assim, pela última vez, passa a fazer algo que qualquer pessoa decente em sua situação faria: salvar e ajudar quem pode. Seja um idoso que falece naquele dia, o garoto que caí da árvore, velhinhas que tem o pneu do carro furado ou um homem engasgado no jantar. A gratidão de todos e a mudança de comportamento fazem com que a Rita perceba um Phil verdadeiro com o qual ela realmente quer ficar. E então o destino se encarrega de enfim não o deixar acordar sozinho às seis da manhã.
Apesar dos acertos do roteiro e da montagem, a naturalidade expressa em todos esses estágios pelos quais o personagem passou não seria devidamente mostrada não fosse a excelente atuação do Bill Murray. O ator soube explicitar a reação emocional do Phil a cada situação como uma adição a personalidade inicial do personagem.
E até mesmo no final, quando o jornalista que conhecemos no início da história já é uma pessoa muito distante do Phil que está diante de nossos olhos, essa transformação soa verdadeira. Além do roteiro fazer essa mudança gradual parecer autêntica, o Bill Murray através de sutis mudanças de entonação e expressões faciais faz com que inconscientemente percebamos a gradual evolução de seu personagem.
Quem assiste hoje a esse clássico de 1993 continua sendo alcançado em um nível pessoal. Isso porque o filme é muito claro em lhe dizer que a vida pode até ser rotineira ou previsível, mas com aprendizados que tornam os dias diferentes. Nos diz que é possível viver momentos distintos dentro de uma rotina simplesmente buscando ser alguém melhor. Alerta para como você anda agindo, porque o destino pode não querer lhe ajudar a merecer a pessoa que você quer ter ao seu lado. E mostra que percepções mudam, ao ponto de um lugar desprezado virar onde você quer passar o resto de sua vida, a partir do momento em que se dispõe a ouvir verdadeiramente as pessoas.