Deitado e de olhos fechados, Amir relembra sua infância numa casa aparentemente confortável em Cabul, no Afeganistão. Lá, ele crescia feliz, brincava de vôlei, empinava pipas e ouvia histórias sobre o pai. Porém, suas memórias mais tranquilas logo terminam, pois o agravamento dos conflitos na região tornou a permanência ali insustentável. Era hora de tornar-se um refugiado.
No último dia 8 de fevereiro, aqueles que acompanhavam a revelação dos indicados ao Oscar tiveram uma surpresa. Havia um longa-metragem dinamarquês que, além de indicado a Melhor Filme Internacional, também havia sido selecionado para concorrer entre os documentários e animações. Era “Flee: Nenhum Lugar Para Chamar de Lar”, obra do diretor Jonas Poher Rasmussen.
Mesmo que recorrentemente mostre vídeos de arquivo para ilustrar alguma situação, o documentário é apresentado como uma animação na maior parte do tempo. E a proposta faz muito sentido. Primeiro porque há o intuito de proteger o Amir e seus familiares, pois eles precisaram mentir para conseguirem os merecidos vistos de refugiados.
Além disso, a maioria das situações que são contadas não possuem registros em vídeo. E como o Amir não poderia aparecer, o uso das ilustrações para demonstrar aquilo que ele conta tornou a obra possível. Sabiamente, muitas vezes o estilo da animação muda e expressa os sentimentos do entrevistado de um modo que geralmente gravações não conseguem.
Ainda que seja uma animação e possua as vozes de atores em alguns diálogos entre os personagens, a obra mantém características típicas de um documentário, como a interação entre o diretor e o entrevistado. A narrativa é imersiva e bem desenvolvida, alternando entre os fatos do passado do Amir e decisões importantes de seu presente. Em determinado instante, essas duas épocas convergem em uma interessante reviravolta.
Se o intuito era dar visibilidade a causa dos refugiados que chegaram a Europa, a escolha do Amir como uma espécie de representante deles é muito acertada. Primeiro porque ele é uma pessoa que se expressa muito bem, ainda que seja desconfortável relembrar certos momentos. Além disso, sua jornada como refugiado é de fato bastante interessante, pois possui instantes que exemplificam o quão duro é ser maltratado por estar ilegalmente em um lugar, sendo que você só saiu de seu país porque permanecer lá tornou-se impossível.
Outro aspecto importante está no fato de que o Amir é gay. Nascido em um país que sequer possuía uma palavra que descrevesse aqueles que possuem interesse em pessoas do mesmo sexo, ele precisou lidar com isso de uma maneira absolutamente silenciosa, pois temia a reação da família. Nas idas e vindas desse assunto ao longo do documentário, se expõe a enorme diferença de tratamento que as culturas afegã e dinamarquesa dão a essa questão.
No fim, “Flee: Nenhum Lugar Para Chamar de Lar” será uma obra lembrada de duas formas. Primeiro, como um filme que apresentou uma história que realmente merecia ser contada. Porém, ao meu ver, a segunda razão é aquela que mais torna esse longa-metragem especial: a originalidade. Ao longo dos anos, muitas histórias acabam não sendo contadas por conta de condições adversas que esse filme também enfrentou, mas encontrou na animação uma forma elegante de superá-las, ao ponto de deixar um desejo de que outros projetos como esse surjam no futuro.