Durante muito tempo, pessoas de pele branca consideraram-se no direito de escravizar seres-humanos de pele escura. Diante desse fato, incontáveis momentos de luta e sofrimento ocorreram. Alguns conseguiram fugir, recuperar sua liberdade e até ajudar outros na mesma situação, entretanto seus nomes sequer foram escritos, simplesmente perderam-se na História. Porém, houve alguém que conseguiu superar até mesmo o esquecimento. Seu nome era Harriet Tubman (Cynthia Erivo).
O interesse pela história da mulher que escapou da escravidão e lutou por aqueles que ficaram para trás cresceu em 2016, quando foi anunciado que o rosto dela substituirá a imagem do ex-presidente americano Andrew Johnson na nota de 20 dólares. E assim, o filme biográfico especulado ao longo dos anos enfim foi feito. A diretora Kasi Lemmons apresenta uma história que acertadamente exibe a população negra como protagonista na luta pela própria liberdade.
Harriet é uma personagem interessantíssima e que tem suas virtudes expostas a partir das relações interpessoais. Ao aparentar certa fragilidade, uma vez que desmaiava recorrentemente, quem poderia esperar que ela fosse se tornar um símbolo de resistência? Bastou que ela acreditasse. Diante de seus feitos, as reações dos demais as conquistas dela são uma das melhores coisas do filme.
Nos caminhos percorridos por Harriet para alcançar a liberdade dela e dos demais, a fé aparece como uma bússola que aponta os caminhos corretos. Nesse ponto, a consistência da narrativa pode tornar-se mais frágil para alguns, pois vários sucessos são justificados unicamente pela crença de que a personagem recebia algum tipo de inspiração divina ou possuía uma intuição extraordinária.
A determinação e a religiosidade da protagonista são muito bem expressas por Cynthia Erivo. Ela deixa a personagem tomar conta de sua voz em todos os momentos, seja para manifestar tristeza ao falar do passado ou expor seu desejo ao requerer maior empenho dos abolicionistas. A alma de Harriet é apresentada em cena especialmente quando a atriz canta músicas como “Go Down Moses” e “Goodbye Song”.
O bom desempenho dos demais atores também contribui para Cynthia ter apresentado uma atuação tão verdadeira em seus diálogos. Nesse sentido destaco Leslie Odom Jr., no papel do abolicionista William Still, que recepciona Harriet na Filadélfia, cidade que servia como refúgio para pessoas que escapavam da escravidão. Quem também vai bem é Joe Alwyn, intérprete de Gideon Brodess, personagem fictício que representa aqueles que um dia se consideraram donos de Harriet. O ator desde sua primeira cena exibe um vilão de olhar e postura de desprezo pela liberdade de pessoas negras.
Um ponto negativo do longa-metragem é a falta de clareza sobre o que era ser um condutor, função para qual a protagonista é designada após uma ação de resgate bem sucedida. Isso porque quando é mencionada a “ferrovia secreta”, não fica claro que esse é um termo criado para confundir os escravocratas, já que na verdade as jornadas eram feitas a pé. Presumiram erroneamente que todos os espectadores do mundo estariam tão habituados com a expressão quanto a audiência americana.
Apesar disso, quando acompanhamos as fugas de Maryland para a Pensilvânia, a obra nos faz sentir uma tensão verdadeira pela situação de risco a qual aquelas pessoas estão submetidas, numa trajetória onde a distância e as barreiras naturais parecem questões menores diante da possibilidade de eles serem encontrados por capitães-do-mato. Ao abordar a situação daquelas pessoas perante a escravidão, o filme acerta ao não focar no sofrimento, mas na luta pela liberdade.
Futuramente presente em aulas nas escolas, “Harriet” entrega mais que uma obra de conteúdo socialmente relevante. Somos apresentados uma trama onde sentimentos como generosidade, compaixão e dignidade enfrentam a desumanidade. Virtudes expressas através de uma incansável lutadora. Uma mulher preta que salvou vidas, manteve famílias unidas e escreveu páginas da História.