Em um país onde a escravidão durou mais de 350 anos, os reflexos são sentidos há gerações. No intuito de reduzir os efeitos dessa época perversa, uma indenização seria oferecida para os descendentes dos escravizados. Entretanto, o governo brasileiro mudou de ideia na última hora. Agora, a ordem é deportar para a África todos os brasileiros de “melanina acentuada”.
Se você estranhou o ano de 2020 no título desse texto, saiba que não é um engano. Esse foi o ano de estreia de “Medida Provisória”, num festival de cinema em Moscou. Depois disso, o longa-metragem já foi exibido nos Estados Unidos, França, Suíça e no Festival do Rio em dezembro. A estreia nas salas de todo país ocorre com seis meses de atraso, após um longo imbróglio envolvendo a ANCINE.
Baseado na peça “Namíbia, Não!”, de Aldri Anunciação, o filme marca a estreia de Lázaro Ramos como diretor. Ao mostrar a perseguição contra a população negra e a reação contra essa atrocidade, a obra cinematográfica vai bem além dos diálogos no apartamento onde Antônio (Alfred Enoch) e André (Seu Jorge) ficam trancados para não serem presos e expulsos do país.
No cartaz, ao citar um review estrangeiro, o longa-metragem promete ser uma “mistura de Black Mirror com Parasita”. De fato, nós vemos em cena aquela surrealidade distópica que a série trazia. Porém, ainda que o filme coreano contenha uma forte crítica as elites econômicas daquele país, ali não há um aspecto fundamental de “Medida Provisória”: a luta antirracista.
De uma forma bem brasileira, na qual traz certa comicidade para uma trama de prender o fôlego, o roteiro nos leva até uma situação extrema, no intuito de explicitar a discriminação racial que se apresenta em frases cotidianas carregadas de preconceito, na articulação excludente daqueles que fingem não serem racistas e, por fim, no momento em que muitos já não temem expor sua face hedionda.
Protagonizando essa história, Alfred Enoch vive o Antônio, um sujeito culto e de personalidade pacífica, mas que ao ser levado para essa realidade chega num ponto de esgotamento, no qual literalmente grita aquilo que tem guardado dentro de si. Por sua vez, Seu Jorge interpreta o André, um cara gente boa, mas que nunca gostou de levar desaforo para casa. Ao viverem esses personagens que se complementam e possuem diálogos tão ricos, os atores representam bem não apenas eles, mas toda a população negra que — na ficção e na realidade — é vítima de condutas desumanas.
Em papéis de personagens coadjuvantes, três grandes atrizes se destacam. Ao viver uma médica chamada Capitu, Taís Araújo mostra em sua atuação o quão desgastante é precisar lutar o tempo todo, especialmente em um monólogo que desde já entra para a história do cinema brasileiro. Por sua vez, ao interpretarem mulheres que articulam a “devolução”, Adriana Esteves e Renata Sorrah colocam em cena a postura dissimulada de pessoas que na verdade só possuem ódio dentro de si.
O filme lida ainda com uma pauta recorrentemente sequestrada pela extrema-direita: a noção de patriotismo. A obra deixa claro que amar um lugar não é meramente carregar uma bandeira, votar num candidato ou dizer que tudo está certo, pois não há nada mais patriota que querer ver todos vivendo bem, sempre com respeito, corrigindo os erros do passado e promovendo a igualdade de oportunidades.
Além das atuações, do roteiro e do bom desenvolvimento dos personagens, “Medida Provisória” ainda possui uma ótima fotografia, na qual há capricho desde os planos detalhe até as imagens panorâmicas captadas com um drone. A montagem também é boa, especialmente por manter a obra com um ótimo ritmo. Também vale mencionar a sábia escolha de uma música para o final do filme, pois a letra reforça a mensagem e aquela voz merece estar sempre presente.
Quando um longa-metragem vai bem em todas as suas dimensões, há um mérito inegável de seu diretor em fazer tudo funcionar quase perfeitamente. Deste modo, Lázaro Ramos merece ser exaltado por sua extraordinária estreia. Para alguns, “Medida Provisória” pode parecer um grande exagero. Porém, em um país onde decisões judiciais, escolhas governamentais e condutas policiais expressam preconceito frequentemente, não é difícil imaginar que estamos à uma simples canetada de algo parecido. Além disso, o roteiro e as atuações transmitem tanta verdade que tudo parece ainda mais plausível.