Como você deve se portar quando é uma peça que não se encaixa no quebra-cabeças da vida social? Mais que isso: e se você é uma mulher e lhe carimbarem o rótulo de desonra da família em uma sociedade altamente machista? Essa premissa, que ainda soa tão atual em várias regiões do mundo, molda a conjuntura na qual conhecemos Mulan, personagem que dá título à animação baseada na vida de uma chinesa lendária que teria vivido entre os séculos V e VI.
Logo no começo da história, Mulan tem sua vida tirada do previsto por duas vezes. De cara ela é rejeitada pela casamenteira, sendo vista como uma moça inapta para se casar com algum rapaz da região. Após ouvir que nunca trará honra para sua família, retorna para casa. Pouco depois, ela descobre que seu velho pai deverá servir na guerra, mesmo sem condições de saúde adequadas. Durante a noite, insatisfeita com a situação, ela foge para guerra no lugar dele que nada pode fazer, uma vez que a jovem seria morta se descobrissem que ela se trajou como um homem para lutar.
Dirigida por Tony Bancroft e Barry Cook, a animação passeia por vários gêneros do cinema. Usa as músicas para fazer a protagonista expressar seus sentimentos e apresentar seu mundo. Tem momentos de drama quando Mulan parece ser destinada ao fracasso. Lança a personagem em uma aventura que, do ponto de vista da personagem, tinha um resultado imprevisível. Acrescentando o Mushu e companheiros de exército, situa Mulan em situações cômicas. E por fim, ao inserir sua heroína em um conflito militar, torna-se o primeiro filme de guerra da vida de toda uma geração.
Apesar de um pouco corrido, no intuito de reduzir a duração para atender o público infantil, o filme consegue transmitir o peso das conquistas e dos fracassos. Possui uma protagonista altamente empática, por quem torcemos e nos compadecemos. Acerta ao apresentar para as crianças quais são as principais peculiaridades da milenar cultura chinesa. Em poucos minutos situa todos, visual e musicalmente, sobre como se pensa e se vive por ali.
Variando entre momentos de alegria, resignação, coragem e tristeza, Mulan demonstra sobretudo lealdade: principalmente a quem ela é, mas também ao seu pai, familiares, companheiros de batalha e a sua sociedade, mesmo sem ser totalmente aceita. Conhecemos uma jovem que deseja ao mesmo tempo apresentar-se ao mundo como ela acredita ser, mas também encaixar-se nessa comunidade na qual ela foi criada e cujos valores estão em seu caráter.
Os demais personagens foram cuidadosamente escritos para favorecer a manutenção do segredo da lendária heroína. O comandante é um rapaz inexperiente que foi promovido por ser filho do general. Os demais recrutas são bobalhões. E assim, escondendo suas características femininas e dedicando-se para demonstrar força, Mulan busca enganar eles. O Mushu também é fundamental para a jovem, motivando e animando ela em momentos difíceis, além de ajudar na manutenção da artimanha em meio a suas trapalhadas.
O público de hoje ainda pode esperar um ótimo filme. Ainda que tenha sido lançado há mais de 20 anos, “Mulan” é tão atual que a Disney está prestes a lançar uma nova versão. A apresentação lúdica dessa história é assertiva na maior parte do tempo, apenas subestimando a inteligência de alguns personagens em poucas vezes. Visualmente segue encantador e narrativamente prende a atenção com sucessivos momentos em que nos perguntamos sobre o que está por vir.
Além disso, assistimos a uma aula de uma hora e vinte minutos em um filme formador de caráter. “Mulan” ensina sobre manter-se forte, mesmo que triste, quando você tem dúvidas internas sobre como agir, especialmente em um momento em que o mundo ao seu redor lhe dá a tentação de desistir de tudo por estar contra você. É também um grande estimulo de soluções criativas para problemas que parecem impossíveis.