Esse texto contém spoilers.
A China Imperial é repleta de tradições. A vida de homens e mulheres não difere muito da época de seus antepassados, tendo seus destinos definidos pelas convenções sociais. As características próprias ficam de lado, pois agir em desacordo com os costumes significa trazer desonra para sua família. Nessa realidade vive Mulan (Yifei Liu), uma jovem que precisa esconder seus dons de guerreira para expressar delicadeza. Mas quando seu velho pai é convocado pelo exército, no intuito de evitar a morte dele nas batalhas, ela finge ser um homem e vai no lugar do idoso.
Você provavelmente já conhece essa premissa desde o final dos anos 90, quando estreou a animação sobre a personagem chinesa. Em 2020, “Mulan” dá continuidade ao projeto da Disney de fazer remakes de animações clássicas em live-action. E como nos outros lançamentos houveram muitas comparações do público, o narrador do novo filme deixa claro, ainda no primeiro minuto, que há muitas lendas sobre aquela guerreira e ele contaria o seu próprio relato.
Percebe-se nessa fala um desejo de distanciar o longa-metragem da versão anterior da história. Uma vontade legítima de quem quer ver a própria obra apreciada por si só, independentemente do que veio antes. Mas as lembranças do público não se apagam facilmente, ainda mais quando o referencial é marcante e está na memória afetiva. Ao aceitaram o desafio de nos levar novamente para a jornada de Mulan, a diretora Niki Caro e sua equipe precisavam apresentar aos espectadores algo que também fosse tão grandioso quanto a personagem milenar.
E até começam bem nesse objetivo. É adequadamente explorada a questão do segredo de Mulan, não restringindo isso apenas a situações como a personagem evitar tomar banho com os demais. O sigilo sobre a real identidade dela é trazido para os diálogos, inclusive criando um divertido momento no qual os soldados falam sobre as mulheres sem saber que há uma entre eles.
Percebe-se o trabalho cuidadoso de cenógrafos, decoradores, figurinistas e maquiadores que, ao construírem um filme visualmente belíssimo, ajudaram a nos localizar na época, lugar e cultura onde os acontecimentos ocorrem. A trilha sonora também cumpre a função de nos imergir naquele ambiente, mas deixa muito a desejar na incumbência de contribuir na construção emocional da narrativa.
A fotografia, que ficou a cargo de Mandy Walker, nos ambienta bem ao mostrar a grandiosidade arquitetônica e as belezas naturais da China. Ao mesmo tempo, apresenta bons movimentos de câmera e escolhe ótimos ângulos em cenas de ação. Também capricha ao fazer uso de planos detalhes, como quando Mulan está sendo maquiada. E por seus acertos visuais essa é uma obra que perdeu muito ao não ser lançada nos cinemas, em decorrência da pandemia de COVID-19.
A história de Mulan possui cinco momentos-chave, sob os quais deveria haver grande atenção nas gravações e que precisam ser pontuados: a começar pela cena da ida à casamenteira, que é muito bem feita, mas a decisão de colocar a convocação para a guerra imediatamente depois é ruim para a história, pois sequer dá tempo para a personagem demonstrar alguma frustração com o ocorrido.
Logo em seguida vem a fuga de Mulan para guerra, um bom momento de tomada de decisão precedido pelo ótimo diálogo entre pai e filha, apresentando a lealdade e a coragem dela, que seriam exaltadas posteriormente. Já no exército, acompanhamos a ocasião do banho no rio, onde vemos uma alteração em relação a animação, pois não há vários soldados entrando para banhar-se. Uma decisão acertada, pois mantém o foco na busca da personagem por manter em segredo a verdade sobre ela.
Por sua vez, a batalha que termina em uma avalanche não é um momento bem desenvolvido. Ainda que tenha sido boa a ideia de fazer a protagonista usar os próprios inimigos para causarem o deslizamento de neve, a execução é confusa. A movimentação de Mulan é caótica, pois repentinamente ela fica sozinha diante de Xianniang (Li Gong) e depois, ao escapar lateralmente do desmoronamento, também aparece subitamente para resgatar Honghui (Yoson An).
Infelizmente, o pior ainda estava guardado para o final: o momento que Mulan salva o Imperador, o auge da jornada dela, onde torna-se reconhecida e admirada pelo povo. Mas não há os olhares da população em uma noite de festividade diante da Cidade Proibida. O grande feito da personagem é reduzido a luta com um único vilão, à luz do dia, em um palácio em construção e tendo apenas o monarca como testemunha.
Como um filme que começa mostrando tanta grandiosidade arquitetônica guarda para o clímax um local em obras? Como querer que o público não faça comparações, se a memória lembra de um final grandioso, enquanto os olhos assistem a um desfecho visualmente pobre? E para piorar, antes de ser vista a cerimônia na qual o Imperador vai homenagear Mulan no palácio, por sete segundos é exibida a festa do lado de fora, numa comemoração pela vitória da guerra. Ou seja, além de frustrarem o espectador ainda mostram como poderiam ter feito algo melhor.
Yifei Liu atua bem no papel da protagonista. A Mulan é uma personagem que demonstra sua coragem não ao fazer cara feia quando vai à luta, mas por ter uma postura resignada de quem sabe que tudo pode dar errado, mas tem a perseverança de manter seu segredo e seguir em frente um dia após o outro. E muito desse espírito demonstrado em cena vem através do bom trabalho da atriz chinesa.
A decisão de colocá-la para representar a personagem também foi acertada porque ela consegue algo que não é fácil: ficar suficientemente parecida com um rapaz, mudando a postura corporal e a voz, mas sem permitir que personagem perdesse a feminilidade que já era conhecida dos espectadores. Além disso, Yifei Liu não deixa a nada a desejar nas cenas de lutas.
O elenco como um todo é muito bom. A começar pelos consagrados Jet Li, que interpreta o Imperador, e Donnie Yen no papel do Comandante Tung. Os atores que atuam como os soldados são muito úteis, pois ao desempenharem um bom trabalho ainda ajudaram a atriz principal a expressar bem as reações da protagonista.
Mas dentre os coadjuvantes quem mais se destaca é Li Gong, ao representar a Xianniang. Ela ofusca o vilão Böri Khan (Jason Scott Lee) fazendo uma antagonista ressentida, por não ter tido seus dons valorizados e ser mal vista até mesmo dentre o seu grupo. A personagem serve como um parâmetro do caminho que Mulan poderia ter seguido se não fosse alguém tão firme em seus princípios.
Apesar dos acertos relatados, do bom ritmo e dos momentos divertidos, o filme decepciona o público. Ainda que, ao comparar com animação, muitos apontem como o principal problema as alterações nos personagens, como a tão falada ausência do Mushu, não é essa a questão. Interpretações diferentes de um mesmo fato ou história são frequentes e saudáveis, não só no cinema, mas na arte e na vida em geral. E Mulan é uma personagem importante que terá sempre novas versões com olhares distintos.
O ponto é que faltou ao longa-metragem apegar-se a alguma coisa e ser excelente naquilo. Em certos momentos ele parece querer ser realista, mas em outros vai para um caminho místico. Além disso, drama e ação são dois gêneros difíceis de serem combinados. Um exibe o heroísmo fazendo alguém se descobrir internamente e lidar com dilemas, enquanto o outro mostra quem o personagem é através de façanhas.
Assim, tendo em mãos uma história já conhecida pelo público, era necessário escolherem entre mergulhar mais na mente da personagem ou explorar mais a imagem de guerreira. Tentam fazer as duas coisas e para o público ficou uma experiência previsível com direito a um clímax enfraquecido. Felizmente, apesar de tudo, acertaram em manter Mulan com seus valores pessoais intactos.