Esse texto contém spoilers.
“Há apenas duas indústrias que chamam seus consumidores de ‘usuários’: drogas ilegais e softwares”. Essa afirmação de Edward Tufte, exibida em “O Dilema das Redes”, dá o tom da gravidade das alegações feitas contra empresas como Facebook, Instagram, Google, Twitter e Reddit. Em pouco mais de uma hora e meia, o documentário conta como bilhões de indivíduos são tratados como marionetes, enquanto acreditam ter algum controle sob suas redes sociais e pesquisas na internet.
Sob a direção de Jeff Orlowski, o longa-metragem apresenta depoimentos de profissionais que trabalharam em algumas das empresas de tecnologia citadas, além de especialistas na área. Inicialmente as declarações alertam sobre como não existe consumo gratuito das redes sociais, uma vez que a obtenção de nossos dados gera publicidades direcionadas que culminam em lucro para as plataformas. Em outras palavras: é mostrado como somos o produto à venda.
Posteriormente, os entrevistados denunciam as técnicas para manter os usuários pelo máximo de tempo nos sites e aplicativos. Nesse momento, os serviços são apresentados como verdadeiras drogas que retém os consumidores ao viciá-los na dopamina liberada pelo organismo nas recorrentes interações sociais. São mencionadas também as graves consequências dessa permanência excessiva nos indivíduos, incluindo depressão, ansiedade e o aumento no índice de suicídios entre adolescentes.
Por fim, são revelados os prejuízos à sociedade como um todo. É demonstrado como fenômenos recentes como o aumento da disseminação de fake news, a polarização política crescente no mundo e a propagação de teorias da conspiração possuem tudo a ver com uma prática das empresas de tecnologia: apresentar as ‘verdades’ que os usuários gostariam de ver no intuito de engajá-los por mais tempo, abrindo mão de destacar para todos aquilo que é verdadeiro.
Todo esse acertado ordenamento das denúncias ao longo do filme pode fazer parecer que “O Dilema das Redes” é uma obra perfeita, mas na realidade o documentário passa longe disso. Faço essa afirmação porque entendo que essas importantes alegações sobre os impactos sociais das redes foram apresentadas de uma maneira excessivamente retórica e persuasiva.
O uso da dramatização onde acompanhamos os estragos das redes sociais na vida do personagem Ben, interpretado pelo ator Skyler Gisondo, é um grande desperdício da oportunidade de acompanhar usuários reais e demonstrar os danos verdadeiros em suas vidas. A ideia de humanizar os algoritmos deixa tudo excessivamente didático e não é nada realista para um documentário.
Se há a boa ideia de mostrar o que acontece quando um adolescente fica uma semana sem o celular, por que não fazer isso de verdade? Por que não pegar alguém que está começando a usar um smartphone e acompanhar essa pessoa por um ano? Se notificações constantes afetam o convívio social, por que não gravar em uma escola com alunos reais? Se as acusações são acertadas, por que não dar as empresas citadas o espaço para apresentar sua defesa?
Há também um problema com ritmo do documentário. Ao costurar as declarações dos entrevistados, visando nos persuadir, afirmações fortes perdem o impacto que teriam se não fossem tantas pessoas dizendo a mesma coisa. Certamente muitos espectadores abandonaram o filme no meio por simplesmente pensaram ‘ok, já entendi’. Na última meia hora, ao mostrar como democracias ao redor do mundo estão sendo afetadas, um bom ritmo é alcançado com o uso de imagens de fatos recentes, incluindo a eleição de 2018 no Brasil.
Um aspecto que não pode deixar de ser mencionado é o péssimo timing de lançamento do documentário. Se você está lendo esse texto no futuro, eu lembro: estamos no meio de uma pandemia. Durante esses dias de isolamento social, a principal forma de interação interpessoal é justamente via redes sociais. Ainda que estejam mais conscientes, não dá para as pessoas reduzirem o uso agora. Além disso, o filme veio quando principal assunto que pauta os Estados Unidos, onde estão sediadas essas empresas, são as eleições presidenciais.
Ou seja, se viesse a público em outra época, o impacto pretendido pelo documentário seria maior. Ainda assim, acredito que esse seja um produto audiovisual que será assistido por muitos anos, inclusive com professores exibindo aos alunos em sala de aula. Claro, sem qualquer pretensão de fazê-los abandonar as redes, mas com o intuito de incentivar um consumo consciente que devolva aos indivíduos o controle. Ainda que excessivamente persuasiva, a obra é relevante e precisa ser vista.