Ao entrar despretensiosamente no porão mal iluminado de um orfanato para garotas, Beth Harmon encontrou um homem sentado diante de um tabuleiro com 16 peças. A menina de nove anos ainda não sabia, mas aquele jogo se chamava xadrez e ela nasceu para jogá-lo. Entretanto, sua trajetória não seria fácil, pois nessa mesma época ela também começou a lidar com a dependência química que lhe perseguiria durante sua carreira.
A história da garota prodígio do xadrez apareceu primeiro no livro publicado por Walter Tevis em 1983. Entretanto, 37 anos depois, a jornada de Beth Harmon continua muito relevante. Enquanto cada vez mais as mulheres provam sua competência ao conquistarem merecidos espaços na sociedade, a protagonista mostra o quanto é difícil ser pioneira em uma área tão dominada por homens.
Um ponto muito forte da minissérie é sua ambientação nos anos 60. Seja através da moda, penteados da época, ao apresentar cidades como Las Vegas ou quando entramos em uma simples farmácia, “O Gambito da Rainha” lhe faz viajar no tempo e ficar imerso na época onde a história se passa. Por sua vez, o nome da produção é justamente sua maior fraqueza. Fazendo referência a uma jogada do xadrez, o título afasta espectadores ao dar a entender que há um foco no jogo.
Muito pelo contrário. Ainda que dê uma grande vontade de conhecer mais sobre xadrez ao assistir a minissérie, a verdade é que essa é uma história muito humana. Mesmo famosa e respeitada dentre aqueles que a cercam, Beth é uma jovem solitária que não sabe lidar com a dependência do consumo de calmantes e álcool. E sem saber como enfrentar o problema, ela simplesmente não luta e passa a tentar conviver com isso.
Três atrizes interpretam a protagonista. Isla Johnston vive a Beth ainda menina, que chega ao orfanato e logo aprende a jogar com o zelador Shaibel (Bill Camp), já mostrando o quanto a garota era obsessiva, positiva e negativamente. Annabeth Kelly dá vida a personagem principal aos cinco anos de idade, aparecendo somente durante os flashbacks onde Beth lembra de momentos com a mãe biológica.
Por fim, aquela que dá vida a protagonista na maior parte do tempo: Anya Taylor-Joy. Tendo sua carreira em ascensão desde o filme “A Bruxa” (2015) e sendo bastante lembrada após seu papel em “Fragmentado” (2016), depois dessa minissérie ela definitivamente deve ser reconhecida como uma das melhores atrizes de sua geração.
Isso porque Anya te faz esquecer de qualquer outra personagem anterior ao entregar seu rosto e suas expressões para Beth tomar conta. E assim, diante dos adversários, assistimos a uma jogadora implacável, mas que reage com muita insegurança e deixa a emoção tomar conta quando algo saí de seu controle.
Uma vez que acompanhamos muitos anos da vida da protagonista, há muitas idas e vindas de pessoas na vida dela, seja no ambiente familiar, orfanato, escola e principalmente entre os muitos enxadristas que a enfrentam. Dentre tantos atores alguns se destacam. Primeiro a Moses Ingram, que dá vida a companheira de orfanato Jolene, uma moça que ao contrário da protagonista é bastante extrovertida.
Marielle Heller interpreta a mãe adotiva Alma Wheatley, outra personagem com quem a jovem constrói uma relação de fortalecimento mútuo. A atriz apresenta uma mulher triste com os rumos da vida e que encontra prazer no abuso de álcool. Dentre os enxadristas destaca-se o campeão americano Benny Watts, interpretado por Thomas Brodie-Sangster. Inicialmente aparentando ser apenas um competidor tão implacável quanto a protagonista, aos poucos ele assume outras funções na história.
Claramente planejada desde o roteiro e com o ótimo trabalho de Michelle Tesoro, a montagem da minissérie é brilhante. Ainda que incontáveis partidas de xadrez sejam exibidas, não fica uma sensação de repetição, pois a cada vez o jogo é apresentado sob uma circunstância diferente. Conhecidas por serem longas, as partidas possuem um bom ritmo graças aos cortes. Mesmo sem saber nenhuma regra, através das reações dos jogadores e da plateia, além da trilha sonora, fica fácil entender o que está acontecendo.
Nos apresentando virtudes, fraquezas, dificuldades e traumas da protagonista desde quando ela era muito nova, a minissérie cria um vínculo entre público e personagem, nos fazendo ter orgulho das conquistas dela, mas também gerando medo sobre o que possa acontecer quando Beth entra numa fase muito ruim.
Ao mostrar como essa jogadora se desenvolve enquanto se torna uma mulher, o diretor e roteirista Scott Frank apresenta a narrativa de uma forma que prende sua atenção e lhe deixa curioso pelo que está por vir. Quando um capítulo termina sempre lhe faz pensar ‘como é que vai ser agora?’. Até chegar o momento em que “O Gambito da Rainha” saberá como te surpreender e lhe emocionar.