Não levar as demandas do trabalho para casa e esquecer os problemas pessoais no ambiente profissional. Isso é algo que muitas pessoas desejam e que os funcionários da Lumon já podem vivenciar. Por meio de um chip instalado no cérebro dos colaboradores, eles podem esquecer-se completamente de sua vida fora da empresa, o que possibilita uma concentração total nas atividades coorporativas.
Quem lê assim até pode pensar que essa é uma boa ideia, mas são justamente as implicações negativas dessa realidade que “Ruptura” aborda. Criada por Dan Erickson e com direção de Ben Stiller e Aoife McArdle, a série mostra, por exemplo, o perigo que seria se as pessoas não soubessem quais atividades desempenham em seus empregos, nem tivessem clareza sobre se são tratadas dignamente enquanto estão trabalhando.
A série começa com a chegada de Helly (Britt Lower), uma nova funcionária. Deitada sobre a mesa de uma sala de reuniões, ela acorda sem qualquer recordação de sua vida até então. Seus novos colegas também não fazem ideia de quem ela seja. A única garantia que sua presença ali era segura veio por meio de um vídeo, no qual sua versão externa garante ter aceitado o trabalho espontaneamente.
Por algumas razões, a decisão de iniciar a série assim é muito boa. Para começar, não havia uma forma melhor de nos introduzir no contexto da Lumon se não pela chegada de alguém novo, pois essa pessoa descobre junto com a gente quais são as regras daquele local. Além disso, logo fica claro o quanto os demais funcionários estão adaptados àquele ambiente e suas práticas.
Apesar de ser o centro das atenções em vários momentos, a Helly não é a personagem principal. Na série, essa é a função do Mark (Adam Scott), o novo chefe do Departamento de Refinamento de Macrodados, um setor que nem ele sabe ao certo para o quê serve. Ao longo dos capítulos, acompanhamos o protagonista não apenas nas peripécias pelos corredores da empresa, mas também fora daquele lugar, onde ele é um viúvo que decidiu trabalhar na Lumon para sofrer menos ao longo de seus dias.
Evidentemente, a primeira temporada de “Ruptura” não poderia ser apenas a introdução dessa premissa, na qual indivíduos são divididos em dois. Era preciso ter uma história forte e que deixasse o espectador preso à trama a cada episódio. E aí a série derrapa um pouco, porque a narrativa se prende bastante as dinâmicas da empresa, muitas vezes desinteressantes. É enfadonho, por exemplo, acompanhar a relação do Irving (John Turturro) com uma pessoa de outro setor da companhia.
Porém, ainda que o ritmo em alguns instantes não seja dos melhores, as dúvidas que pairam no ar mantêm o espectador sempre conectado a trama. Dentre elas, a curiosidade sobre quem a Helly é fora dali e sobre quem está do outro lado da linha quando um certo celular toca. Se ao longo dos oito primeiros episódios a intensidade veio a conta-gotas, no último capítulo “Ruptura” entrega seu melhor momento na temporada, valorizando inclusive algo que passa despercebido ao espectador em vários momentos até ali.
A escolha do elenco parece toda muito adequada, pois os atores sempre entregam aquilo que se espera de seus personagens. Interpretando o protagonista, Adam Scott diferencia bem o Mark interno e o externo, ao expressar os diferentes estados de espirito de cada um. Além disso, o ator sabe encontrar e demonstrar o que há de comum nos dois. Também vale destacar duas atrizes: Britt Lower, por saber transitar nos diferentes estágios de humor da Helly, e Patricia Arquette, principalmente por transmitir bem a dissimulação da Sra. Cobel.
Ao nos situar pelos infindáveis corredores estreitos da Lumon, a série mostra o quanto aquele lugar é grande e sufocante. Por sua vez, a espaçosa sala daquela pequena equipe reforça o quão sozinhos eles estão ali. Já quando as cenas saem da empresa, a região fria e vazia combina com a tristeza vivida pelo protagonista. Vale pontuar ainda o ótimo uso do efeito dolly zoom — consagrado em filmes como “Um Corpo que Cai” (1958) e “Tubarão” (1975) — para marcar as transições das diferentes versões dos personagens.
Unindo um conceito interessante, personagens cativantes, boas atuações e uma ambientação incrível, essa se tornou a série do momento. Ao deixar ótimos ganchos para próxima temporada, “Ruptura” tem tudo para entregar uma história ainda melhor a partir daqui, desde que saiba explorar o passado de alguns personagens e setores desconhecidos da Lumon. Por enquanto, eu não vejo a hora de estarmos de volta ao escritório.